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MEMÓRIA

Como era o mundo quando Santa Cruz se emancipou

Antes da imponente Catedral São João Batista, Igreja Matriz estava instalada no Centro

O ano de 1878 representou nova era para Santa Cruz. No dia 28 de setembro daquele ano, a antiga colônia conquistava a emancipação política e administrativa de Rio Pardo, 28 anos após sua fundação. A data foi marcada com a instalação da Câmara de Vereadores, em casa na esquina das ruas São Pedro e Taquarembó (atuais Marechal Floriano e 28 de Setembro).

Conforme o arquiteto Ronaldo Wink, a independência foi possível diante do notável crescimento econômico da colônia. A emancipação tornou-se marco de uma série de melhoramentos para o município, sobretudo ao agilizar soluções dos problemas locais e destinação de verbas.

Primeira sede da Câmara de Vereadores, esquina entre a Marechal Floriano e a 28 de setembro, prédio ainda existente

Santa Cruz, na época, era esboço da cidade que viria a se tornar no século 21: a imponente Catedral São João Batista, cartão-postal do município, começaria a ser construída cinco décadas depois. No seu lugar, encontrava-se a Igreja Matriz. Tampouco havia o Túnel Verde – formado por 180 tipuanas – embelezando e provendo de sombra a principal via do Centro. 

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O progresso urbano, segundo Wink, seria impulsionado pela produção de tabaco, cujas exportações levaram à instalação das primeiras indústrias no início do século 20. E, assim, Santa Cruz desenvolveu-se rapidamente. A emancipação do município foi apenas uma das significativas transformações registradas ao longo da década de 1870. Em todo o planeta, incluindo o Brasil e o Rio Grande do Sul, aconteceram mudanças sociais e econômicas que viriam mudar os rumos da história.

Historiador, professor e escritor Mozart Linhares da Silva

Enquanto Santa Cruz do Sul celebrava sua liberdade política de Rio Pardo, o mundo passava por transformações significativas. Conforme o historiador e escritor Mozart Linhares da Silva, a década de 1870 foi marcada sobretudo pela consolidação do capitalismo industrial, além da intensificação do imperialismo europeu.

A chamada Segunda Revolução Industrial, segundo Linhares, proporcionou avanços tecnológicos consideráveis, fomentando a mecanização da produção, a expansão das redes ferroviárias e o crescimento urbano. Ao mesmo tempo, a política de dominação colonial das potências europeias promoveu avanço sobre a África e a Ásia, dando início a uma nova fase de rivalidade entre os estados imperialistas.

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Durante essa reconfiguração global, a Europa passava por processos de unificação nacional, na Alemanha e na Itália, concluídos em 1871. “A unificação alemã, em especial, teve impactos profundos tanto na geopolítica europeia quanto nas comunidades de imigrantes no exterior”, explica Linhares. 

De acordo com o o doutor em História, a vitória prussiana na Guerra Franco-Prussiana resultou na humilhação da França e no nascimento do Império Alemão, sob a liderança de Otto von Bismarck. E contribuiu para o fortalecimento de um projeto nacionalista centralizado, com forte ênfase na autoridade estatal e na identidade cultural germânica.

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Linhares ressalta que tal processo repercutiu nas colônias de imigração alemã no sul do Brasil. A unificação alemã promoveu entre aqueles que haviam chegado décadas antes (e que provinham de diversos reinos, ducados e principados germânicos, incluindo Prússia, Baviera, Pomerânia, Renânia e Vestfália) uma identificação nacional comum, inexistente até então. 

A consequência do movimento, conforme o historiador, foi a valorização da cultura, da língua e das tradições germânicas, o que gerou uma identidade híbrida, que alguns estudiosos denominam “teuto-brasileirismo”. “Tal identidade fortaleceu o sentimento de coesão nas colônias, legitimando a preservação de instituições culturais próprias, como escolas comunitárias, jornais em língua alemã e associações culturais”, complementa.

Somado a isso, o novo contexto internacional da Alemanha foi favorável à consolidação do orgulho étnico entre os descendentes de imigrantes. As transformações econômicas e demográficas no Império Alemão, assim como o crescimento populacional e a intensificação da industrialização, mantiveram o fluxo migratório para o Brasil ao longo da década de 1870 e no momento posterior. 

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Os imigrantes que chegaram nesse período ao Brasil testemunharam fatos turbulentos. O Império (em seu segundo reinado, sob o comando de Dom Pedro II) iniciou a década de 1870 com o fim da Guerra do Paraguai, que culminou com a derrota do Paraguai e a vitória da Tríplice Aliança (formada por Brasil, Argentina e Uruguai). 

A década de 1870 também é lembrada pelas críticas à monarquia, acusada de ser incapaz de atender aos anseios da sociedade brasileira. Ainda em 1870 foi lançado o Manifesto Republicano, que expressava o sentimento contrário ao Império e o desejo por um modelo federalista. Já o ano de 1871 marcaria o sistema de escravidão brasileiro com a promulgação da Lei do Ventre Livre, que garantia a liberdade dos filhos de escravas nascidos a partir da data. 

Linhares destaca que é nesse contexto multifacetado, de reordenamento político internacional, expansão das ideologias nacionalistas e reconfiguração das relações sociais e econômicas, que se insere a emancipação política de Santa Cruz. “A consolidação de uma comunidade coesa, articulada em torno de valores culturais compartilhados e fortalecida por fluxos migratórios contínuos, foi decisiva para o reconhecimento político da localidade como unidade autônoma no cenário regional e estadual”, salienta.

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Historiador, professor e escritor Mateus Skolaude, da Unisc

Tal como o resto do planeta e o Brasil, o Rio Grande do Sul – na época, Província de São Pedro do Rio Grande do Sul – também lidou com intensas transformações sociais, econômicas e culturais. Conforme o historiador Mateus Skolaude, professor no Departamento de Ciências, Humanidades e Educação da Unisc, a zona sul do território, anteriormente motor da economia imperial com as charqueadas pelotenses, perdia gradativamente espaço. 

O sistema pastoril – baseado no latifúndio, na concentração de poder e de renda e na dependência estrutural do trabalho escravo – foi impactado pela crise do escravismo e pela concorrência internacional. Entretanto, segundo o historiador, emergia um novo eixo de dinamismo econômico: o modelo colonial estabelecido em 1824, na fundação da colônia de São Leopoldo, sustentado no minifúndio e na agricultura familiar. “Mais diversificada e autônoma, essa forma de produção respondia melhor às demandas do mercado capitalista, à época”, afirma Skolaude. 

O processo se ampliou a partir de meados do século 19, com a expansão das colônias germânicas no Vale do Rio Pardo, em 1849, assim como a vinda de imigrantes italianos, após 1875, que fundaram novos núcleos na Serra Gaúcha. Tal reconfiguração social e econômica contribuiu também para o delineamento da política provincial. 

Skolaude detalha que, três décadas após a Revolção Farroupilha, o Rio Grande do Sul ainda vivia as tensões entre o silêncio e a suspeita herdadas do conflito, ao mesmo tempo em que buscava a reintegração ao Império. 

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Município tornou-se um símbolo da nova era

Foi nesse contexto tumultuoso, marcado por alterações sociais, políticas e econômicas, que Santa Cruz do Sul conquistou sua liberdade política em 28 de setembro de 1878. Na avaliação do historiador Mateus Skolaude, a cidade, situada no coração do Vale do Rio Pardo, expressava, em escala local, o dinamismo das áreas de colonização germânica. Segundo ele, simbolizava também a ascensão de uma nova lógica econômica, em contraste com o declínio do latifúndio pastoril da metade sul. 

Skolaude ressalta que os colonos alemães e seus descendentes – excluídos sociais na Europa, marginalizados e, muitas vezes, desempregados pela Revolução Industrial em curso – encontraram aqui uma possibilidade concreta de desenvolvimento econômico e social. 

A jovem comunidade, segundo o historiador, afirmava-se como polo agrícola, sustentada pela religiosidade, pelo trabalho familiar e organização comunitária, com especial destaque para a educação. Um dos primeiros documentos encaminhados pela Câmara de Vereadores, ainda em 1878, demonstrava que havia 25 escolas, totalizando 694 estudantes (416 meninos e 278 meninas.)  “O dado impressiona não apenas por revelar o espírito comunitário e organizacional dos imigrantes e de seus descendentes em relação à educação, mas também pelo contraste que evidencia”, avalia Skolaude. 

Rua Marechal Floriano, no século 19: passados 147 anos, está embelezada pelas 180 tipuanas do Túnel Verde; o sobrado à direita era de Carlos Trein Filho

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Um dia na história

Romar Beling

A emancipação de Santa Cruz em relação a Rio Pardo, o município-mãe, em 28 de setembro de 1878, é um acontecimento que se projeta na região, no Estado, no País e no mundo. E encontra referenciais na literatura. Por exemplo: naquele mesmo ano, na Alemanha, Friedrich Nietzsche, então à altura dos 34 anos, publicava Humano, demasiado humano, obra que se tornou de leitura recorrente em todas as épocas desde então. 

Igualmente consagrado tornou-se o romance O primo Basílio, do português Eça de Queiroz, que então estava com 33 anos, para sempre um clássico. Como também é outro romance, Iaiá Garcia, desta vez publicado no Rio de Janeiro, por um romancista já se aproximando dos 40 anos: Machado de Assis, o futuro fundador da Academia Brasileira de Letras, duas décadas mais tarde.

No mesmo terreno da literatura, no ano anterior à emancipação de Santa Cruz, em 1877, falecia no Rio o escritor cearense José de Alencar. Em Porto Alegre, estava a pleno vapor o chamado Partenon Literário, que congregava desde 1868 importantes autores e intelectuais, sob a liderança de Apolinário Porto-Alegre.

Era uma época de forte efervescência, no ambiente das ideias e da revolução tecnológica, com muitas inovações que se espalhavam pelo mundo. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a primeira ligação férrea fora inaugurada em 1874, entre Porto Alegre e São Leopoldo. Era uma nova alternativa de locomoção que se materializava para os gaúchos, e que só na década de 1880 contemplaria também Rio Pardo e com ligação até Santa Maria.

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Em Santa Cruz, importantes empreendimentos já haviam surgido. Em 1870 fora inaugurada a Deutsche Realschule, o atual Colégio Mauá, que alcança, portanto, a idade de 155 anos. A colonização alemã completava duas décadas quando a Deutsche Realschule entrava em atividade. Quatro anos depois, em 1874, foi a vez do Colégio das Irmãs, nas imediações da primeira igreja católica, diante da praça central.

Por sinal, era nessas quadras centrais que a vida social e a atividade econômica se concentravam. Numa esquina, em ambiente estratégico, ficava a Câmara na qual se tomavam as decisões públicas. Metros depois na mesma rua, havia o Club União, fundado em 1866, e que na emancipação já possuía 12 anos de existência. 

Ao lado dele, o sobrado da família Trein. Na ocasião, Carlos Trein Filho, com pouco mais de 30 anos, já era o diretor da Colônia, cargo que assumira com apenas 23 anos, em substituição ao belga-brasileiro Alphonse Mabilde. Como tal, foi um dos nomes mais influentes junto ao governo do Estado em favor da autonomia. Concretizada esta, tornou-se intendente (o equivalente a prefeito). Trein foi ainda juiz de paz, engenheiro, agrimensor, arruador, inspetor, e deixou um dos primeiros mapas mais completos de toda a região.

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