Uma das experiências mais incomuns que o engenheiro belga Alphonse Mabilde viveu no Rio Grande do Sul, quando residia em São Leopoldo, no período da Revolução Farroupilha, foi ter sido aprisionado por indígenas coroados (os atuais Kaingangs). Em andanças pela serra, ao norte da colônia alemã no Vale do Sinos, foi capturado e ficou em poder dos nativos por cerca de um ano. As anotações que fez na ocasião resultaram no livro Apontamentos sobre os indígenas selvagens da Nação Coroados dos matos da Província do Rio Grande do Sul – 1836-1866, editado pela Ibrasa em 1983.
Com livro recentemente lançado em Porto Alegre, sua tataraneta Karen Bruck contribui sobremaneira para reposicionar, com justiça e pertinência, o legado de Mabilde na ordem do dia. Como referiu em entrevista à Gazeta do Sul, os documentos que chegaram a suas mãos foram digitalizados e serão colocados na internet, à disposição de pesquisadores e demais interessados. Já o acervo físico ela pretende doar ao Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
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Karen salienta as contribuições do tataravô. “Tenho a sorte de pertencer a uma família que preza muito a memória.” Alphonse teve cinco filhos. Adolpho, nascido em Santa Cruz, foi o responsável por fabricar e difundir o uso das primeiras bicicletas no Estado.
Além disso foi um ornitólogo reconhecido, que catalogou e publicou em 1896 um livro ilustrado com mais de 300 páginas sobre as borboletas do Rio Grande do Sul. Emílio, seu filho mais novo, foi um pioneiro construtor naval e fundador em 1898 do Estaleiro Mabilde, localizado na ilha da Pintada, em Porto Alegre. “Pretendo continuar contando suas peripécias”, frisa a tataraneta.
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Entrevista
Karen Bruck – Professora e escritora

- Gazeta do Sul – Como o acervo de Mabilde chegou às mãos da senhora?
As mulheres da família Mabilde desde 1960 mantêm um encontro mensal chamado de “Chá das Tesouras”. Essas reuniões têm possibilitado o acesso ao riquíssimo acervo de memória familiar compartilhada. Em um desses encontros, em meados de 2023, nos ocorreu tentar descobrir onde estariam os escritos originais de Alphonse sobre os indígenas coroados, os únicos de que tínhamos conhecimento.
Esses escritos tinham sido compilados e publicados em 1984 por uma tia, já falecida. Para nossa surpresa, um de seus filhos, que reside em Canela, encontrou uma caixa de papelão esquecida no fundo de sua garagem. Ao abrirmos a caixa, descobrimos um verdadeiro tesouro: documentos de mais de 150 anos que sobreviveram milagrosamente às traças, cupins e umidade. A caixa continha não só os apontamentos sobre os indígenas coroados (atuais Kaingang) como inúmeros documentos, relatórios e correspondências trocadas entre Alphonse, o Presidente da Província e o Diretor Geral das Colônias, Daniel Hillebrand, entre 1835 até 1879. Além disso, havia inúmeras anotações sobre plantas brasileiras e geologia. - Até ali, de que informações a senhora dispunha sobre o seu tataravô?
Sabíamos unicamente, graças a uma de suas bisnetas, que ele era engenheiro, fluente em mais de dez idiomas e viera para o Brasil, fugido da Bélgica. Conhecíamos também seus apontamentos sobre sua convivência com os indígenas. A surpresa foi descobrir o quanto suas habilidades eram multifacetadas e o número de funções e atividades que desempenhou ao longo de sua vida em diferentes cidades do Estado.
Como engenheiro, agrimensor, tenente-coronel, delegado, vereador, diretor de colônias alemãs, gerenciou terras concedidas aos colonos, mediou conflitos, construiu inúmeras pontes e estradas, planejou malhas urbanas, aldeou e defendeu indígenas e, especialmente, defendeu os interesses dos colonos alemães frente ao presidente da Província. - Como se deu a opção pela narração em primeira pessoa, sob o ponto de vista de Mabilde?
Foi um grande desafio começar a redação: parte de sua trajetória de vida já havia sido compilada, mas de forma bem fragmentada. Três fatores que foram fundamentais: a existência de inúmeros documentos por ele escritos e preservados; o fato de o nosso Estado contar com vários Arquivos Históricos e a possibilidade de acesso à farta documentação do Rio Grande do Sul do século 19, digitalizada e disponível na Biblioteca Nacional.
Pesou muito também o fato de minha família preservar muitíssimo a memória oral, o que ajudou a mergulhar em sua fascinante personalidade. Preenchi lacunas com farta bibliografia e uso de relatos de viajantes que passaram pelo Estado na mesma época. Alphonse tinha uma personalidade muito instigante. Era um republicano servindo ao Império, mediando as relações entre monarquistas e farroupilhas, entre colonos alemães e indígenas Coroados. Resolvi também dar voz e mostrar suas peripécias do ponto de vista de suas duas esposas e, com isso, homenagear as mulheres de minha família. - Sobre a Colônia de Santa Cruz, deixou muitos registros?
Alphonse deixou sua marca em todas as cidades por onde passou ou morou: Rio Grande, Porto Alegre, São Leopoldo, Santa Cruz, Vera Cruz e São Lourenço. Em Santa Cruz, particularmente deixou muitos registros, sob forma de correspondências e relatórios.
Ele foi diretor-geral da Colônia de Santa Cruz de 1864 a 1870.
Seu trabalho era organizar o cadastro da colônia em cada uma de suas linhas, para serem expedidos os títulos de propriedade.
Reclamou que encontrou o arquivo na repartição em completo estado de desmantelamento: “Um só ofício não havia, e só à força de um trabalho insano consegui, com auxílio da Diretoria Geral dos Negócios da Fazenda Provincial, organizar o registro geral de entradas de colonos, que deveria servir de base ao cadastro. Não havia, também, planta alguma da colônia nem documentos da legislação provincial.”
Alphonse levantou todos os dados estatísticos solicitados pelo presidente da Província: número de colonos, com data de chegada e lugar de procedência; número dos casamentos, nascimentos, batizados e óbitos, com nacionalidade e culto; produtos da colônia por quantidade e qualidade; mapa das escolas, com número, sexo, idade e culto dos
alunos. Informou ao presidente sobre a péssima situação dos caminhos e estradas coloniais, já que, na maioria, eram mal abertas e cheias de atoleiros, com passos quase intransitáveis e vaus resvalando em montanhas íngremes.
Apontou que essas dificuldades de transporte eram o principal empecilho ao desenvolvimento da Colônia, daí a urgência de se tratar dos melhoramentos, passando a planejar a construção de pontes e estradas, como a do Rio Pardinho.
Posteriormente, por ordem do Presidente da Província, elaborou plano para estabelecimento de uma cidade na Linha Dona Josefa. Essa linha havia se originado em 1854, com a introdução de quatro famílias e quatro solteiros.
Após ter feito levantamentos topográficos e medição de terras, abertura de picadas e traçado de estradas, encaminhou carta à Assembleia Legislativa da Província para a formalização do povoado, que demarcou com oito ruas e uma praça no centro, a qual foi denominada Villa Thereza.
Alphonse narra com detalhes os dissabores de se confrontar com Frederico Haensel, comerciante bem-sucedido, com negócios em Porto Alegre e proprietário de venda em Santa Cruz, que ocupava o cargo de vice-cônsul da Prússia. Fez questão também de orientar os colonos sobre o cultivo do fumo, fazendo circular entre eles o Manual da Cultura, Colheita e Preparação do Tabaco, publicado no Rio de Janeiro, em 1865.
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