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RUMO À FRANÇA

Delegado Luciano Flores de Lima: de Santa Cruz à sede da Interpol

Lima será o novo chefe da mesa de coordenação das Américas e trabalhará em Lyon

Foi em março de 2014 que o Brasil ouviu falar pela primeira vez na Operação Lava Jato. Na ocasião foi deflagrada a fase inicial, com a prisão de um dos personagens-chave do gigantesco esquema criminoso que começava a ser descoberto: o doleiro Alberto Youssef. Um dos agentes da Polícia Federal que participaram da ação estava lotado na Delegacia de Santa Cruz do Sul. Nos anos seguintes, o delegado Luciano Flores de Lima acabou por protagonizar alguns dos momentos mais importantes da operação, incluindo o interrogatório do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em março de 2016, o qual coordenou. Passados quase sete anos, Lima se prepara para uma nova missão: a partir do mês que vem, vai liderar a Interpol nas Américas.

Natural de Santa Maria, onde se formou em Direito na universidade federal, Lima ingressou na PF em 2002 e chegou a Santa Cruz em 2008, onde chefiou a delegacia até 2011. Por aqui, esteve à frente de investigações importantes. Uma delas é a Operação Colono, que revelou as fraudes no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Também coordenou o primeiro inquérito do País acerca de ransomware – sequestro eletrônico de dados de empresas.

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Pouco antes da deflagração da primeira fase da Lava Jato, Lima foi convidado a se incorporar à força-tarefa, em Curitiba. Além de Youssef e Lula, outros figurões passaram por ele. Lima conduziu as prisões do ex-deputado Luiz Argolo, em abril de 2015, e do exministro José Dirceu, em agosto daquele ano. Também interrogou o ex-senador Gim Argello e o ex-assessor do PP João Claudio Genu.

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Após deixar a Lava Jato em 2016, atuou no Espírito Santo, foi superintendente da Polícia Federal no Mato Grosso do Sul e Paraná – nos dois estados, lidou diretamente com o contrabando de cigarros, crime que tem impacto direto sobre a economia do Vale do Rio Pardo. Ainda em 2016, esteve no Centro de Cooperação Policial Internacional da PF durante a Olimpíada do Rio de Janeiro. No Paraná, permaneceu até junho do ano passado, quando saiu para concorrer ao cargo da Interpol.

Terceiro filho de um advogado e uma professora, ambos já falecidos, Lima não é o único da família a ter seu nome carimbado em grandes histórias de combate à corrupção. Um de seus irmãos, Loraci Flores de Lima, é juiz federal em Santa Maria e ganhou notoriedade ao assumir os processos da Operação Rodin, que em 2007 apontou a existência de fraudes milionárias no Detran gaúcho. Na entrevista que concedeu à Gazeta do Sul nessa semana, às vésperas da transferência para a França, Luciano contou histórias de sua experiência na Lava Jato e comentou o legado da operação e as críticas direcionadas a ela.

Luciano Flores de Lima durante o depoimento do ex-presidente Lula, em março de 2016: “Foi talvez o momento mais tenso de minha carreira”

ENTREVISTA
Luciano Flores de Lima

Delegado da Polícia Federal

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Como surgiu a oportunidade de o senhor participar da Operação Lava Jato?
Eu ainda estava lotado em Santa Cruz do Sul. Estava aproveitando a vida em Santa Cruz, os amigos, os colegas, o bom trabalho que a delegacia vinha fazendo, era um ambiente de trabalho excelente. Estava cuidando das hortaliças nos fundos da minha casa no Jardim Europa, quando recebo uma ligação de um colega e aí ocorre a guinada. Não esperava fazer parte de uma força-tarefa. Eu fazia uns trabalhos bem interessantes, a exemplo da Operação Colono e da operação do sequestro eletrônico de dados. E até porque minhas filhas eram pequenas e eu teria que ficar longe da família. Mas eles me convenceram, disseram que eu tinha perfil, e eu acabei aceitando por curiosidade.

Qual o momento mais marcante da sua experiência na operação?
Um deles foi na primeira fase, quando eu tentei prender o Alberto Youssef, que era uma peça-chave para desvendar aquele esquema bilionário. Não sabíamos até então qual era a extensão desse esquema. Deflagramos a operação em uma segunda-feira. Na véspera, eu estava em um hotel e disse aos agentes para irmos até a frente do apartamento do Youssef para planejar como seria a abordagem, pois não poderíamos dar a chance de o porteiro ou o segurança avisarem ele que havíamos chegado lá. Fomos, paramos em uma cafeteria quase em frente ao prédio e, enquanto tomávamos um café expresso, analisamos todas as entradas e saídas e qual seria a melhor forma de fazer a abordagem. Voltamos para o hotel e, na madrugada, os colegas de Brasília ligam e me dizem: “Onde vocês estão?”. Eu digo: “No hotel ainda, o mandado é só às 6 da manhã”. Aí disseram que o Youssef havia fugido. Entrei em choque. Pensei: “Será que ele me viu? Será que eu dei bandeira e vamos perder a principal prisão?”. Afinal de contas, eu havia feito diversos interrogatórios com ele lá em 2004, ele poderia ter me reconhecido.
Aí tivemos que nos reorganizar. Ele estava em São Luís, no Maranhão, tinha pego o avião na madrugada. Por sorte, os colegas de São Luís se mobilizaram, o superintendente fez questão de ir pessoalmente ao hotel e prenderam ele às seis da manhã. Nesse momento, eu entrei no apartamento dele e efetuei a apreensão de diversos documentos interessantes. Depois, esclarecemos que, na verdade, a viagem para o Maranhão já estava prevista, ele não estava fugindo da operação. Fazia parte do trabalho dele circular por todo o País. Ele estava com uma mala, com R$ 600 mil, e ia entregar para um agente político. Quando recebeu uma ligação, durante a madrugada, e soube que tinha policiais perguntando por ele, pegou a mala e entregou para um comparsa que estava em outro quarto do hotel.

E quanto ao interrogatório do ex-presidente Lula, em março de 2016, que o senhor conduziu?
Eu participei de todo o planejamento daquela ação, que envolveu dezenas de equipes. A escolha do local onde íamos colher o depoimento foi muito criteriosa. Primeiro, pensamos em levá-lo para a sede da superintendência da PF em São Paulo. Mas ela fica perto de uma marginal, tem poucas ruas de acesso, podia ter manifestações que bloqueassem a rua. Na hora da chegada ou saída, ele ou os advogados poderiam sofrer algum dano. E assim fomos avaliando, até que surgiu a descoberta, da minha parte, de que no aeroporto de Congonhas há um salão presidencial, um prédio separado onde somente o presidente toma o avião. Um colega foi até São Paulo fazer uma análise e viu que era um local bom, reservado. Então, se houvesse manifestações, iam demorar até descobrir onde era o local, e esse era o tempo que precisávamos. E foi exatamente o que aconteceu. Foi um momento muito tenso, talvez o mais tenso da minha carreira.

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Em algum momento, receou que a situação saísse do controle?
Foi um interrogatório de mais de três horas. Começamos exatamente às 8h15. Eu fui até a casa do ex-presidente às 6 da manhã, mas já tínhamos encaminhado uma equipe para caso ele saísse antes. Quando entramos, dei a notícia de que havia um mandado de busca e apreensão. Levei uma equipe extra para fazer uma busca detalhada no apartamento enquanto nos deslocávamos com ele. Em um primeiro momento, ele disse que não iria. Nós o convencemos a ir sem a necessidade de conduzi-lo coercitivamente, sem a necessidade de algemá-lo, por exemplo. Levamos ele para o salão presidencial e logo começaram a chegar deputados e senadores querendo entrar. Tivemos que nos indispor, esclarecer que era um momento de colheita de declarações e não caberia a presença deles. Mas os ânimos se exaltaram, porque eles achavam que tinham autoridade para entrar. Tivemos de engrossar a voz, fazer com que eles respeitassem o momento. Acabaram ficando em outra sala, mas fazendo muito barulho e incitando a população, que começava a chegar pela rua. A gente ouvia toda a movimentação, tanto de apoiadores quanto de antagonistas, enquanto o interrogatório estava acontecendo. Por volta das 11h30, conseguimos concluir. Eram mais de 120 perguntas. Quando acabou, os deputados e senadores entraram e queriam levar o ex-presidente para o meio do povo. E aí foi mais um momento de tensão, porque havia grupos de antagonistas e eu disse: “Se vocês fizerem isso, a vida do ex-presidente vai estar em risco. Não façam isso”. Aí chamei o segurança mais próximo e pedi que convencesse o ex-presidente. Graças a Deus, eles me ouviram e levaram ele para a sede do sindicato.

O senhor esteve mais alguma vez com o ex-presidente?
Sim. Anos depois daquele momento, quando fui convidado para ser superintendente do Paraná. Quando cheguei na superintendência, fui visitá-lo na sala-cela que ele ocupava. Fiquei me perguntando: “Será que ele vai lembrar de mim?”. Entrei na sala de Lula, ele estava na esteira, aí me olhou, desligou a esteira, veio até mim e disse: “Cadê o celular da Marisa?”. Eu disse: “Como assim?”. E ele: “Lembra, no dia da minha condução, eu pedi para você devolver o celular da Marisa porque não tinha nada importante para a investigação?”. Aí expliquei que tudo o que foi apreendido deveria ser colocado à disposição do juiz e eu não podia devolver nada. “Bom, agora não precisa mais”, respondeu. Ele não só me reconheceu como lembrou o pedido que tinha me feito. Aí acabamos tendo uma espécie de convivência durante vários meses. Foram momentos tensos também, porque havia uma demanda diária muito grande de advogados, jornalistas, e cada decisão, a favor ou não aos pedidos dele, tinha muita repercussão.

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Houve o momento em que o irmão mais velho de Lula faleceu e não houve liberação para ele ir ao velório.
Naquele momento, não havia condições logísticas. Não havia avião disponível para levar nem aparato policial em São Paulo que pudesse dar segurança para ele. Aí foi uma enxurrada de críticas. Depois veio a morte do neto dele, mas aí já tínhamos um plano de ação para a situação. O governo do Paraná concedeu o avião no qual Lula foi levado, e a polícia de São Paulo deu um apoio fundamental para garantir a segurança dele. Eram momentos tensos dia a dia. Qualquer coisa que a gente dissesse, sempre havia críticas, seja dos apoiadores, seja dos opositores dele.

Mas, no geral, a convivência com ele na superintendência foi pacífica?
Sim. A polícia não é um órgão de assessoria de acusação, preza pela imparcialidade e pelos princípios do estado democrático de direito. Qualquer pessoa que estiver sob a nossa guarda, vamos fazer de tudo para assegurar a integridade e o bem-estar. Então, não havia como ser diferente. Sempre houve um tratamento cordial e respeitoso, tanto da nossa parte quanto da parte dele.

O delegado na operação para capturar José Dirceu: “Até a Lava Jato, ninguém imaginava que as pessoas mais ricas do País pudessem ser presas”

O senhor disse que a PF preza pela imparcialidade, mas a Lava Jato sempre foi acusada de direcionamento. Como responde a essas críticas?
Qualquer ato que envolva investigação de uma pessoa com vinculação política gera críticas de seus apoiadores. Faz parte da cultura brasileira culpar quem encontrou o cadáver e não quem matou a vítima. Quando nos deparamos com uma investigação de grande repercussão, seja na área política ou econômica, infelizmente, quem apoia o suspeito do crime acaba atacando os investigadores. A gente sofre críticas, seja de que houve motivação política, seja de que houve abuso de autoridade. As críticas são sempre as mesmas, estamos acostumados. Não vemos tantos ataques ao mérito, aos absurdos da corrupção, quanto vemos à metodologia da investigação. Às vezes dizem que ela foi rápida, outras vezes dizem que foi muito demorada. A investigação é uma ciência, e cada caso é um caso. Cada caso começa de um jeito, e não sabemos como e quando vai terminar. Há muitas possibilidades de caminho de investigação que fazem com que ela seja mais rápida, mais demorada, mais exitosa. E isso, para quem não entende ou tem má-fé ao criticar, acaba desviando a atenção para o acessório, para situações que não são o mérito.

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Qual, na sua opinião, é o legado da Lava Jato? O Brasil é menos corrupto do que era antes da operação?
O grande legado da Lava Jato foi mostrar o quanto havia de desvios e o quanto o sistema operava para o fortalecimento de um segmento político-empresarial em desvantagem à linha de concorrência. O cerne da Lava Jato é um cartel de grandes empreiteiras para fazer obras superfaturadas, e parte do superfaturamento era para a corrupção de políticos e empresários envolvidos. O resumo é isso, o resto é perfurmaria, é grito de desesperados e condenados, de pessoas que perderam empregos e dinheiro com um sistema que existia há anos. Se o Brasil está menos corrupto ou não, isso é muito relativo. A corrupção está ligada a uma cultura que não se muda de uma hora para outra. É necessário que a gente, com muita perseverança e autonomia dos órgãos de investigação, prossiga com operações como a Lava Jato, para que a sensação de impunidade se converta em sensação de punidade e faça com que aqueles que praticam crimes passem a acreditar que serão descobertos e, sim, presos, como conseguimos fazer na Lava Jato. Até a Lava Jato, ninguém imaginava que as pessoas mais ricas do País, donos das maiores empresas das áreas de construção e também as pessoas mais importantes politicamente, pudessem ser presas. E elas não só foram como permaneceram presas por muito tempo, algo inédito.

O senhor liderou a Operação Colono na delegacia de Santa Cruz. A investigação foi concluída em 2015, mas demorou quatro anos para o MPF apresentar denúncia à Justiça e a ação ainda está em fase preliminar. Isso lhe causa frustração?
Não tenho frustração porque a investigação foi concluída com êxito. Fizemos a nossa parte e de uma forma detalhada, concluímos o inquérito de maneira muito satisfatória. Todos os indiciados foram denunciados pelos mesmos crimes, o que confirma o bom trabalho da Delegacia de Santa Cruz. A partir desse momento, o policial deve fazer um corte no seu sentimento de apego àquela investigação. Ele se doou para mostrar a verdade e, quando conclui, não pode ficar se remoendo se o MPF demorou anos para oferecer uma denúncia sem justificativa ou se algum indiciado não foi condenado. Temos que nos afastar disso, porque senão não conseguimos nos doar para outros trabalhos. Eu procuro fazer esse corte. Mas fico muito feliz quando vejo que uma ação penal foi concluída de acordo com o que eu havia concluído no inquérito.

O senhor atuou no Paraná e no Mato Grosso do Sul, duas das principais portas de entrada de cigarro contrabandeado no Brasil. Na sua avaliação, como é possível avançar no combate a esse crime, tão caro ao Vale do Rio Pardo?
O combate ao contrabando de cigarros tem dois pilares. O primeiro é o da repressão policial. E isso a Polícia Federal tem feito tanto no Mato Grosso do Sul quanto no Paraná. Reforçamos as nossas fronteiras, o número de apreensões de caminhões cada vez aumenta, batemos recorde em cima de recorde. E estruturamos uma das principais delegacias de fronteira, que é a de Guaíra. Mas esses investimentos não vão acabar com o contrabando, só vão aumentar as apreensões. O que vai reduzir efetivamente o contrabando é o desinteresse dos contrabandistas. Para isso acontecer, o cigarro brasileiro deve ter o mesmo preço do paraguaio. Porque aí todo esse esquema criminoso, muito custoso, não vai compensar. Hoje, cada vez que um caminhão é apreendido, o prejuízo para uma organização criminosa é de em torno de R$ 500 mil. No Mato Grosso do Sul, em uma ocasião apreendemos 17 caminhões, um prejuízo multimilionário. Então, para que esse prejuízo compense, o lucro tem que ser muito alto. E por que o lucro do cigarro paraguaio é grande? Porque o imposto é muito baixo e ele se torna barato. Enquanto o Paraguai tributa entre 20% e 30%, no Brasil a tributação é de 80% Quando o cigarro paraguaio chega ao comércio brasileiro, é vendido em média por R$ 2,50, enquanto o preço mínimo do cigarro regulado no Brasil é R$ 5,00. Isso, para mim, não tem lógica. Essa política de preços precisa ser revista com o fim de reduzir o cigarro contrabandeado, que não passa por qualquer controle de qualidade.

A “lista da Interpol”
Com 194 países associados, a Interpol é uma das maiores organizações internacionais do mundo e tem como objetivo oferecer cooperação e auxílio logístico às polícias. Na secretaria-geral, em Lyon, segunda maior cidade da França, trabalham centenas de policiais de todo o planeta. É justamente na sede de Lyon que Lima vai atuar. Na condição de chefe da mesa de coordenação das Américas, ele será o intermediador dos escritórios nacionais centrais de todo o continente.

A missão terá duração de, pelo menos, dois anos. Para se preparar, Lima teve que adquirir fluência em inglês e espanhol. Nos últimos meses, já durante a pandemia, contratou dois professores particulares de Santa Cruz, que conhecia do tempo em que morava aqui, e fez aulas quase diárias por videoconferência.

Uma das principais frentes de atuação da Interpol envolve a famosa lista de criminosos procurados. Quando um foragido de um dos países associados foge para o exterior, o escritório nacional é acionado e, se atendidos os critérios, a chamada “difusão vermelha” é encaminhada para Lyon. Os pedidos são recebidos em um sistema que funciona 24 horas e, em pouco tempo, os 194 países-membros recebem o mandado de prisão já traduzido.

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