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Coluna

Dia de Halloween

As gurias lá de casa andaram ocupadíssimas ao longo desta semana, às voltas com tecidos negros, brancos e vermelhos. Como é tradição nos dias que antecedem o Halloween, passaram horas produzindo suas fantasias e tramando quais guloseimas seriam servidas por ocasião da data, neste sábado. As três só não planejam sair pela rua extorquindo doces dos vizinhos com a tradicional ameaça – “doces ou travessuras” – por causa da pandemia e também porque acham vexatório bater de porta em porta fantasiadas. De forma que, a exemplo de anos anteriores, farão uma festinha em casa mesmo, reservada aos olhos dos mais íntimos.

A confecção das fantasias transcorreu sob absoluto sigilo e, no dia em que escrevo esta coluna, ainda não me foi dado o privilégio de saber oficialmente quais serão os trajes. Contudo, pelo que consegui perceber, Ágatha, a caçula, vai de freira fantasma, enquanto as duas irmãs mais velhas apostarão na linha zumbi. No ano passado, Ágatha muniu-se de imenso chapelão e vestiu-se de bruxa, Yasmin de boneca zumbi e Isadora de IT, a Coisa. A produção foi digna de cinema, com maquiagem carregada: olhos cercados por sombras, bocas costuradas, lábios tingidos de vermelho ou negro, cicatrizes, baratas e teias de aranha desenhadas na pele.

Aliás, naquele ano o mesmo figurino foi utilizado pelas gurias dias antes do 31 de outubro, na Procissão das Criaturas – ocasião em que passei por situação bastante constrangedora, cujos meandros, só agora, aproveito para esclarecer à comunidade santa-cruzense, a fim de dirimir eventual mal-entendido que persista em relação a minha sanidade mental. Ocorre que, naquele sábado, havíamos combinado que não participaríamos da procissão. Apenas assistiríamos, da calçada da Floriano, à passagem da multidão fantasiada. Afinal, eu e a Patrícia somos de outros tempos, mais reacionários, de antesdo desembarque do Halloween e do estilo geek no Brasil.

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Por isso, fomos, eu e a Patrícia, vestidos à paisana, munidos apenas com térmica e cuia para o mate. Já as gurias foram fantasiadas. Óbvio que, quando começou o desfile, teve início também a insistência para ingressarmos na turba.

– Vamos, pai, vamos…
– Deixa, mãe, deixaaaaaa…
– Que chato ficar só olhaaaandooo…

Acabamos, enfim, nos rendendo e entramos na marcha, seguindo as três. E logo senti na pele, enquanto caminhava pela Floriano e sorvia o mate (cabisbaixo, sobre a cuia), o quanto é constrangedor ser “normal” em meio a monstros, fantasmas, bruxas, heróis, zumbis, vikings e cavaleiros medievais. Estando em trajes de passeio, senti-me como um tolo que não tivesse entendido o rico espírito do desfile.

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Para piorar, gaiatos começaram a gritar, da calçada:

– Ei, Düren, que fantasia sem graça é essa?
– Aí, Ricardo, que máscara horripilante estás usando…

E o gran finale, ao término do desfile, foi quando recebi um Whats do colega Zé Augusto Borowsky, um notório zombeteiro. Simulando tom jornalístico, o texto dizia que “a criatura mais sinistra da procissão fora o Mateador Assassino” – no caso, eu – o qual, passando-se por uma pessoa comum, “distribuíra cuias de chimarrão com chumbinho aos desavisados”.

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Que vergonha!
Mas as gurias se divertiram um bocado e, no fim das contas, é isso que importa.

– X –

Conforme escrevi antes, o Halloween é uma festa relativamente jovem no Brasil, não brincava-se de Dia das Bruxas na minha infância, pelo menos não lá nos altos do Bairro Pedreira. Trata-se de uma tradição norte-americana de origens difíceis de se precisar. Supõe-se que teria chegado à América de carona com os imigrantes irlandeses, herdeiros da cultura celta.

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Os antigos celtas tinham por tradição a festa pagã do Samhain, quando comemoravam, ao fim de outubro, o sucesso das colheitas e preparavam-se para o início do inverno – a estação mais sombria do ano. Acreditavam que, nas noites de Samhain, abriam-se as fronteiras do mundo sobrenatural, permitindo o aparecimento de fadas, espíritos maléficos, duendes travessos e cavaleiros sem cabeça.

Para manter essa turma assustadora longe, os celtas deixavam oferendas nas matas ou vestiam-se, eles próprios, de monstros, na tentativa de ludibriar os visitantes do além. Mas, como também apreciavam uma boa farra, faziam seus ritos em meio a muita comida e a generosas doses de cerveja e hidromel. De bobos, os celtas não tinham nada.

– X –

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A primeira manifestação de Halloween que presenciei ao vivo foi há uns cinco ou seis anos, quando crianças vestidas de monstro passaram a circular pela rua onde morávamos, à caça de doces. Lembro que uma vizinha mais corajosa decidiu pagar pra ver: ao invés de depositar doces nas cestas, escolheu a opção 2 – travessuras. Foi então alvo de uma saraivada de ovos de galinha, que os travessos mantinham escondidos nas cestas.

Achei aquilo um absurdo, não só pelo atentado a uma idosa, mas pelo desperdício dos ovos. Por isso, aqui em casa ovos, farinha e confeitos têm outro destino no Halloween: transformam-se em guloseimas deliciosas, ainda que decoradas de maneira repugnante para quem possui estômago mais sensível. Ano passado, o destaque da mesa preparada pelas gurias, com ajuda da Patrícia, foi um bolo coberto por uma grossa calda verde – “feita de vômito de monstro”, segundo disse-me a caçula – e povoado por baratas e aranhas de plástico, além de vermes de massa comestível. Uma delícia.

Para este sábado, não sei ainda o que me espera. Mas, a julgar pelo esforço das gurias, vem aí um Halloween de arrepiar as barbas de qualquer druida celta que, por acaso, decida aparecer.

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