Um dos expoentes da literatura brasileira contemporânea está de volta às livrarias com novo romance. O escritor Cristovão Tezza, 73 anos, catarinense de Lages, mas radicado em Curitiba (PR), lança Visita ao pai, que configura sua estreia na Companhia das Letras, após ter publicado boa parte de sua obra ficcional pela Record e, mais recentemente, pela Todavia.
Nessa nova narrativa longa, ocupa-se do passado familiar, apoiando-se em anotações deixadas por seu pai, João Batista Tezza, falecido em 1959. Ainda que soubesse da existência desses registros paternos, só durante a pandemia, em 2021, Tezza decidiu manusear tal arquivo. A partir desse material, elaborou o romance.
É a continuidade de uma produção literária que se posiciona entre as mais premiadas da literatura recente no País. Tezza já havia publicado uma dúzia de narrativas ficcionais, em sua ampla maioria romances (mas também contos), quando, em 2007, lançou O filho eterno. A obra simplesmente venceu quase todos os mais significativos certames literários em realidade nacional, como os prêmios Jabuti – Melhor Romance, Portugal Telecom, São Paulo de Literatura – Melhor Livro do Ano, Bravo! e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
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Além deste novo livro, que chegou às livrarias na última terça-feira, a Record acabou de lançar edição, revista pelo autor, comemorativa de 20 anos do romance O fotógrafo, de 2004. Sobre sua obra e o atual momento, Tezza concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul, por e-mail.
Confira a entrevista
- Gazeta do Sul – Chegou às livrarias nesta semana novo romance do senhor, Visita ao pai. Como o senhor classifica essa obra no conjunto de sua produção?
Cristovão Tezza – É o livro mais atípico da minha vida. Durante anos matutei de que modo poderia dar forma à ideia de trabalhar com a correspondência deixada por meu pai, que eu praticamente não conheci — se escreveria um romance histórico, um ensaio, uma biografia. Ao mesmo tempo, questões familiares muito pessoais estavam ali presentes, feridas a suturar. Acabei criando uma espécie de “autobiografia do meu pai”, uma viagem pela memória dele através dos olhos do filho, cruzando duas gerações — a dele, formatada nos anos 1930, e a minha, que se criou ao longo dos anos de 1970. - O senhor resgata anotações feitas por seu pai, que faleceu quando o senhor ainda era menino. Em alguma medida o fato de seu pai ter deixado tais registros poderá ter influenciado o senhor a se tornar escritor?
É sempre um mistério o motivo pelo qual nos tornamos escritores. Eu só tive contato com as anotações dele mais tarde, de modo que não vejo uma relação direta; nunca vi meu pai como escritor, o que ele de fato não chegou a ser. O que ele fez a vida inteira foi copiar em 26 cadernos de capa dura toda a sua correspondência, de 1931, em Florianópolis, quando se tornou soldado no Exército, até 1959, em Lages, quando morreu de acidente, já professor e advogado.
Talvez a morte dele, nos meus 6 anos, tenha tido um impacto emocional que só consegui resolver escrevendo, como quem tenta descobrir o que aconteceu. Eu costumo brincar, um tanto a sério, com a ideia de que é a infelicidade que produz literatura.
Visita ao pai constitui autoficção? E como avalia o recurso da autoficção na narrativa contemporânea?
Em toda a minha produção literária, há apenas dois livros de fundo diretamente autobiográfico: Ensaio da paixão, de 1982, em que recrio ficcionalmente meus tempos de participação numa comunidade alternativa de teatro, tipicamente dos anos 1970, e O filho eterno (2007), em que romanceei minha experiência como pai de uma criança com síndrome de Down.
Eu nunca havia pensado objetivamente em “autoficção”, uma categoria de teoria literária surgida décadas atrás na França para dar conta da ficção que não disfarça os fatos reais da própria vida, o que é exatamente o caso de O filho eterno. O termo “autoficção” ressurgiu e acabou entrando na moda; hoje já pode ser entendido com um gênero perfeitamente formalizado da literatura, mais uma de suas ramificações.
Isso não me preocupa: cada projeto literário procura e cria a sua forma. Tenho a impressão que o advento avassalador da internet nas últimas décadas, com a proliferação dos blogues (isso ainda antes das redes sociais), abriu e estimulou o espaço da expressão pessoal direta como nunca houve antes. O antigo diário pessoal que se escondia à chave na gaveta passou espetacularmente para o espaço público. Assim criou-se uma atmosfera propícia à chamada “autoficção”.
O caso de Visita ao pai é outro: eu estava diante de uma outra voz, a do meu pai, documentada por ele mesmo; uma voz para mim desconhecida. O livro é a história dessa viagem em direção a ele, mais de 60 anos depois de sua morte. É um livro de não ficção, mas inteiro perpassado pela percepção literária do mundo, que é sempre muito particular.
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- Sendo natural de Lages (SC), como se deu a mudança da família para a capital paranaense e que importância Curitiba assume em sua caminhada de escritor?
Meu pai morreu em 1959, deixando minha mãe com quatro filhos. Logo ela percebeu que teria mais futuro em Curitiba, e em janeiro de 1962 nos mudamos. Isso representou um corte radical na minha infância e na minha vida, até porque não havia parentes na cidade – a família da minha mãe era de Florianópolis.
Curitiba acabou sendo minha cidade de formação; sinto que tenho uma cabeça inteira curitibana, mas com o toque de deslocamento de quem não nasceu aqui; sempre fica a marca estrangeira, o que é bom para quem escreve. A cidade tornou-se uma das personagens centrais de vários dos meus livros, como Juliano Pavollini, Uma noite em Curitiba, A tensão superficial do tempo, Beatriz e o poeta, entre muitos outros. - Em agosto saiu a nova edição, pela Record, de O fotógrafo, que mereceu premiações e, por sinal, também tem forte relação com Curitiba. Na obra, o senhor trabalha com vários pontos de vista em história ambientada no começo deste século. O que esse livro representa para o senhor?
O fotógrafo, que é de 2004, representou uma mudança literária importante para mim, a partir da linguagem. Mas o autor é sempre suspeito para falar de si mesmo. Eu havia passado seis anos sem escrever ficção, completamente mergulhado na vida acadêmica; em 2002 havia publicado minha tese de doutorado (Entre a prosa e a poesia – Bakhtin e o formalismo russo). O fotógrafo foi uma espécie de renascimento do escritor. - Logo após, em 2007, o senhor publicou O filho eterno, também amplamente premiado. Na avaliação do senhor, é a obra que mais projetou a sua literatura?
Sim, sem dúvida. Eu já era um escritor razoavelmente conhecido, mas O filho eterno, que se tornou um best-seller, teve um impacto inédito para mim, não só pelos prêmios mas por abrir portas no exterior. Foi publicado até na China. E, o principal, permitiu minha demissão da universidade (faltavam ainda dez anos para a aposentadoria) para fazer “voo solo” na literatura, por assim dizer. Não me arrependo. Tomei a decisão certa no momento certo. - Em O espírito da prosa, o senhor reconhece a influência de Bakhtin em sua formação. Por que Bakhtin ganhou essa importância em meio a outras referências?
Mikhail Bakhtin foi uma influência intelectual importante na minha formação acadêmica, mas aconteceu a posteriori; eu já era um escritor formado, já tinha escrito Trapo quando entrei em contato com seus livros. Fui um estudante universitário tardio. O que me marcou especialmente na sua obra foi sua percepção da natureza do romance, da linguagem romanesca, que ele coloca em outro patamar de discussão. Bakhtin ultrapassou o estreito corredor formalista dominante nas discussões literárias do final do século 20. - Além de Bakhtin, quem mais o senhor menciona como influências, seja da teoria ou da literatura em geral?
Numa crônica eu brinquei sobre as influências, dizendo que o que influencia o escritor não são as grandes obras, os grandes escritores, mas a família, o pai, a mãe, o vizinho, o amigo, as fraturas da infância, as crises da juventude. É uma brincadeira, mas tem um fundo de verdade: as leituras vão dando respostas a essas crises e criando a voz do escritor.
Em cada fase da vida a gente cria referências diferentes. Minha formação de origem, na infância, é “iluminista”, tipicamente anos 1950: Monteiro Lobato, Júlio Verne, Conan Doyle – o triunfo da inteligência sobre a superstição, o valor da racionalidade, o culto do progresso. O momento seguinte, o da contracultura dos anos 1960 em diante, vai em direção contrária: misticismo, irracionalidade, ruptura social, um pacote completo que ia dos Beatles à luta armada. Na literatura, as paixões vão mudando com a idade. - Como está a rotina de participação em eventos e projetos de divulgação literária? Tem viajado muito?
Depois que saí da universidade, em 2010, virei uma espécie de “camelô literário”, ajudado também pela grande proliferação de eventos, festas e feiras literárias pelo País e mesmo no exterior. A pandemia representou um corte traumático, intensificado pelas trevas do governo da época. Saímos dela já num outro mundo, com outras referências, sob o império avassalador da internet, e a própria literatura ganhou rumos distintos e diversificados. Sempre que posso, retomo minhas viagens literárias. - Qual sua relação com o Rio Grande do Sul ao longo da carreira? Tem muitos amigos entre escritores gaúchos? Com quem mais costuma manter contato?
O Rio Grande do Sul é uma referência literária obrigatória; para a minha geração, Erico Verissimo foi um escritor incontornável, um narrador clássico e uma influência poderosa. Foi também um contraponto histórico à inescapável centralização cultural do Rio e de São Paulo, a partir da Editora Globo, que alimentou minha formação de juventude.
A ligação com os gaúchos já vem de família; meu pai estudou em Porto Alegre, e o planalto de Lages tinha um elo cultural de certa forma mais intenso com o Rio Grande do Sul do que com o litoral de Santa Catarina (a viagem a Florianópolis, nos anos 30 e 40, era uma odisseia, o que confirmei relendo as cartas do pai na época).
Tenho muitos amigos gaúchos; lembro agora de Pascoal Ianni, amigo maravilhoso, falecido recentemente, com quem tive contato a vida inteira. Participei de dezenas de feiras literárias no Rio Grande do Sul, e várias vezes da incrível Feira de Porto Alegre. O Estado formou uma legião de narradores refinados — a escola de escrita criativa do Assis Brasil é simplesmente extraordinária. É sempre um prazer participar de eventos no Rio Grande do Sul.
O senhor chega a acompanhar a produção recente da literatura brasileira e mundial? Tem lido a turma nova?
Eu tento acompanhar a produção contemporânea, mas estou entrando numa fase da vida – o tempo cada vez mais curto! – mais de releitura de clássicos. De qualquer forma, como sempre, a literatura está mudando, como linguagem e foco temático, acompanhando as profundas mudanças estruturais do mundo pós-internet. É assunto para uma conversa comprida. - Como o senhor lida com a internet e as novas mídias?
Para mim o sonho original da internet — a promessa da biblioteca universal, o acesso total à informação, o mundo da escrita reconquistado depois do império da televisão aberta (que é pura oralidade) – acabou. O advento do celular e a onipresença das redes sociais implodiram o mundo da comunicação em bilhões de fragmentos. É um processo irreversível e estamos bem no meio dessa revolução tecnológica que afeta cada detalhe da vida contemporânea.
Acho que ninguém sabe direito para onde as coisas vão, mas é mudança radical. É inútil dar murro em ponta de faca e imaginar um mundo sem a internet, assim como a invenção da roda não teve volta. Para sobreviver com um mínimo de senso de civilização, o mundo vai ter de se reinventar.
Eu não uso rede social. Nada contra, é outra ferramenta socialmente transformadora, mas quando ela entrou para valer na vida das pessoas eu já estava, por assim dizer, adaptado a mim mesmo. Mantenho apenas um site pessoal (www.cristovaotezza.com.br), que funciona aos interessados como um banco de dados sobre meus livros (bibliografia e fortuna crítica). - Em O espírito da prosa, o senhor adverte que a literatura “tem sentidos diferentes em tempos históricos diferentes (às vezes sentidos radicalmente diferentes), e também em culturas diferentes”. Que sentidos ou que papel a literatura assume hoje?
O advento da internet mudou a nossa relação com a palavra em praticamente todos os seus usos, num processo radical, e é claro que isso afetou os sentidos da literatura. Mas estamos ainda muito próximos, no olho do furacão da revolução tecnológica, por assim dizer, para ver com clareza o que está acontecendo.
Em toda passagem cultural você mantém a literatura que reproduz modelos antigos – o que é um processo mais ou menos inescapável, porque ninguém inventa nada de repente. Mas o conceito de “valor literário” muda, é claro. A internet criou simultaneamente uma politização cotidiana absoluta, pelo transbordamento da informação, e uma fragmentação total e onipresente. Parece que o sentido dominante hoje é ver a literatura como veículo de verdades sociais, parábola de denúncias coletivas. O que não é exatamente uma novidade, da literatura religiosa medieval ao realismo socialista do século 20. É uma questão complexa e fascinante. - O cenário global, marcado por radicalização e decisões controvertidas advindas de lideranças de nações, inspira no senhor que tipo de sentimentos ou de inquietações?
Vai o velho lugar-comum que todo mundo repete a cada geração: o mundo virou de cabeça para baixo! Mas tento resistir a ele, tentando entender o que está acontecendo, a profunda mudança em curso. É impressionante o poder das pressões culturais sobre o andamento do mundo, em contraposição à ideia clássica de se ver puramente a economia como motor dos valores. Talvez porque, de fato, por mais absurdo que pareça, o mundo nunca foi tão rico e nunca vivemos tanto como agora, apesar de todos os bolsões de pobreza e da violência generalizada. Como disse, estamos no meio de uma revolução. A literatura, para mim, será sempre uma forma sensível, subjetiva, única, de investigar a condição humana neste terremoto cultural.
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