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Aprender em meio à crise

ENTREVISTA: “É preciso dar voz aos alunos”, diz ex-ministro da Educação

Janine vê na crise a oportunidade de discutir a presença da tecnologia em sala de aula

Mais do que vencer o conteúdo programático, o grande desafio de escolas e professores em um ano letivo atravessado pela pandemia do novo coronavírus é criar espaços de diálogo para que os alunos possam aprender com a crise. Essa é a opinião de Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação.

Doutor em Filosofia e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Janine, que esteve à frente do MEC por cerca de sete meses em 2015, durante o governo Dilma Rousseff (PT), falou com exclusividade à Gazeta do Sul na tarde de sexta-feira, 17, por telefone. Para ele, é momento de invocar o “papel saneador” da educação e tornar a própria pandemia o tópico prioritário, estimulando os estudantes a falarem sobre a difícil experiência do distanciamento social, ainda que isso implique em deixar as matérias em segundo plano por algum tempo, sob pena de a situação deixar “sequelas terríveis” nos estudantes. “É importante pegar essa experiência que está traumatizando em especial os mais novos e trabalhar em cima dela”, afirmou.

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Em um cenário de escolas fechadas há cerca de cinco semanas, sem perspectiva concreta de quando a normalidade poderá ser plenamente retomada e com muitos professores se vendo obrigados a improvisar aulas a distância, lidando com a falta de preparo e os abismos socioeconômicos entre os alunos, Janine enxerga uma oportunidade de acelerar não só a discussão sobre a presença da tecnologia no ensino, mas também o debate sobre a necessidade de adequação dos currículos escolares à realidade dos jovens do século 21.

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ENTREVISTA
Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação

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O que mais preocupa o senhor em relação aos impactos da pandemia na educação?
A educação tem uma vantagem sobre outras áreas, porque é possível transmitir online. Não há como produzir uma máquina online, mas é possível dar uma aula online. Por isso não é um setor que precisa parar totalmente. Só que há muitas ressalvas. A primeira é que uma aula online não é a mesma coisa que transmitir uma aula que foi preparada para ser presencial. É muito diferente.

O segundo problema é que nem todos os alunos dispõem de computador ou banda larga, e isso se torna ainda mais sério no setor público. As escolas particulares estão conseguindo com mais êxito funcionar com aulas online, por razões óbvias. Isso cria um descompasso muito grande e faz com que muitas escolas públicas simplesmente não estejam ministrando atividades. Outro ponto é a questão dos pais, que precisam ter uma presença maior, acompanhar de alguma forma os filhos. O curioso é que havia um movimento chamado homeschooling, que defendia a educação domiciliar e fazia muito barulho, mas muitos pais estão agora percebendo que dar aula não é tão simples assim.

Então a pandemia está mostrando que ainda não estamos preparados para o ensino remoto?
Quando você dá uma aula presencial, muitos sinais são trocados. Existe o olhar do professor, o olhar dos colegas, até um certo barulho na sala. Ou seja, as pessoas estão convivendo. Em uma aula online, por melhor que seja, você perde esses outros elementos de convivência e passa a ter uma comunicação mais fria. Em uma aula presencial, dependendo do professor, a voz basta. Mas esse professor não vai ter o mesmo êxito em uma aula online, porque é um sistema em que a distração do aluno aumenta exponencialmente. Aí você precisa de imagem, som, música, é outro tipo de preparação. O que muitas pessoas estão pensando é que basta simplesmente filmar a aula presencial do professor, mas não é, você precisa trazer esses elementos adicionais todos, e isso não é simples. É preciso entender qual a pedagogia para o ensino a distância.

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Em qual nível de ensino o desafio do ensino remoto é maior?
Sou muito cético quanto à possibilidade de ensino a distância para crianças e mesmo para adolescentes. Considero que existe uma fase, que vai pelo menos até os 17 ou 18 anos, em que ocorre o fenômeno da socialização, ou seja, sair de casa e conhecer o resto do mundo. Nessa fase, você tem que brincar com outras crianças, eventualmente brigar com outras crianças, você precisa ter a figura que substitui o pai e a mãe, que são os professores. Se fizer tudo de forma distante, isso não vai existir e aí correremos o risco de formar pessoas incapazes para o convívio social. Isso já é problematizado pela difusão dos games: as crianças jogam sozinhas, reduzindo muito a troca de conversas, de afeto, de presença.

O fato de o Brasil ser um país profundamente desigual, com jovens vivendo realidades muito distintas, não é um aspecto relevante para essa discussão?
A rigor, não existe aula inteiramente presencial. Isso seria uma aula em que tudo o que o aluno aprende é pela voz do professor na sala, sem nunca ler um livro. A diferença entre uma aula dita presencial, na qual você leva lições para casa e tem livros para ler fora da sala, e a educação a distância é que nesse caso você vai ter também suportes audiovisuais e não apenas livros, e em alguns casos o elemento presencial é totalmente suprimido.

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No Brasil, a qualidade da educação é muito desigual. No ensino superior, temos 8 milhões de alunos, dos quais em torno de 2 milhões na modalidade a distância. Alguns cursos têm nota máxima, outros têm nota mínima para serem aprovados, outros têm nota baixa e deveriam ser fechados, mas é muito difícil o MEC conseguir fechar. Se você apostar em ensino a distância, pode fazer com que o curso com notas altas emplaque cada vez mais. Esse tipo de curso também tem a vantagem de não depender da geografia. Você pode dar aula para alunos que estão a milhares de quilômetros, pode ter um curso único para o Brasil inteiro e ser um curso excelente. Esses são os aspectos positivos.

Porém, tem a questão da desigualdade social. Se tivermos cursos de alta qualidade, você diminui a desigualdade. Para isso há uma condição básica: todo mundo tem que ter um aparelho receptor, como tablet ou laptop, e acesso rápido à internet. Mas esses são problemas solucionáveis, embora dependam de muito empenho e investimento. No fundo, o único problema que eu vejo mesmo no ensino a distância é em relação àqueles que precisam ser socializados – crianças e adolescentes, basicamente.

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Considerando essa situação imprevisível causada pela pandemia nas escolas, é possível exigir o mesmo que se exigiria em um ano normal dos estudantes ao fim do ano?
Eu faria uma mudança radical. Sobretudo para quem não está conseguindo ter aulas em EAD, mas também para os demais, eu sugeriria que a pandemia fosse desde já a grande questão, que os professores fossem orientados a tornar a crise o tema principal. Discutir com os alunos como foi ficar longe dos amigos, confinados em casa. Isso é muito mais importante do que verificar se o aluno aprendeu uma equação, os elementos químicos ou a história do Brasil. É importante pegar essa experiência que está traumatizando em especial os mais novos e trabalhar em cima dela.

Como fazer isso? Primeiro, as secretarias deveriam fazer uma espécie de roteiro de questões, formar os professores para lidar com tais questões, incentivar os alunos a falar sobre o que sentiram. É preciso dar a palavra aos estudantes, que eles possam dizer o que, para eles, foi complicado. Essa situação (de pandemia) pode deixar sequelas terríveis. O que existe de muito bom na educação é que ela tem um papel saneador, ela pode curar, transformar um trauma em uma oportunidade.

Se os alunos tiverem oportunidade de trocar experiências sobre o confinamento, mesmo que se gaste várias aulas sem aprender matéria, e o professor puder trabalhar isso de forma mais pedagógica seria muito bom. Isso talvez seja mais importante este ano do que cumprir o programa previsto previamente.

Quer dizer, mais do que aprender matérias, o importante agora é aprender com a crise?
Se a gente conseguir fazer isso, vai ser uma façanha. Não é fácil. Se já foi difícil treinar os professores para o ensino a distância, que é uma técnica, é mais difícil formar para uma situação de diálogo, de conversa, de transmissão, de aprofundamento. Mas é perfeitamente factível. É o que deve ser feito, em respeito aos alunos.

O governo federal resiste em alterar a data do Enem. Como fica, na sua opinião, para alunos que têm a expectativa de ingressar na universidade em 2021?
É cedo para falar alguma coisa. Temos alguns meses de pandemia pela frente, mas não sabemos quanto. Teremos muita sorte se em um mês ou dois conseguirmos retornar à regularidade. Na pior das hipóteses, se a pandemia durar o ano todo, teremos um ano perdido. Na melhor hipótese, teremos o Enem e haverá alunos que vão conseguir passar. Isso é inteiramente plausível. Não vai ser como estava previsto, mas vai ser o que é possível.

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Para terminar: qual o senhor acha que será a grande lição deste momento histórico para o setor da educação?
Em primeiro lugar, fomos forçados a introduzir mais cedo do que esperávamos o ensino a distância – ou seja, a utilização de computadores, laptops e smartphones como elementos de aprendizado. Você sabe que existe uma divergência a respeito disso no mundo: há países que proíbem o aluno de entrar com telefone celular em sala de aula e países que utilizam o celular como elemento de aprendizado. Nós estamos enfrentando esse desafio agora e não é simples.

Outra questão é a necessidade de pensar em como articular o currículo com a vida dos alunos. Muitas vezes existe uma deficiência nessa articulação, os estudantes aprendem coisas pelas quais não se interessam. Trata-se de um ponto delicado porque, se você levar muito na direção do que é de interesse dos alunos, eles nunca sairão do mundinho deles e nunca vão estudar coisas mais distantes. Mas se você não levar em conta o universo deles, corre o risco de o conteúdo entrar por um ouvido e sair pelo outro. Portanto, vamos ter que discutir mais essa relação: o que você aprende com aquilo que não tem nada a ver com a sua cultura e o que você aprende a partir da sua vivência e do seu mundo. Esse é outro ponto que temos que aproveitar dessa crise terrível.

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