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ASSUNTO DE PROFESSOR

Fabiana Marion Spengler: “A família deve oferecer atenção, carinho e limites”

Ela teve duas opções: a enxada ou os livros. Escolheu a segunda e não parou mais. Uma das mais respeitadas pesquisadoras da atualidade, a professora Fabiana Marion Spengler, de 49 anos, atua no curso de Direito, mestrado e doutorado da Unisc e é conhecida internacionalmente pelo trabalho em 26 anos de salas de aula. Nessa trajetória, mais do que centenas de alunos, acumula a experiência de quem acompanha as transformações que a educação e o ensino podem proporcionar.

A começar pela mudança da própria realidade. Nascida em Sobradinho, mas criada em Serrinha Velha, então distrito de Segredo na região Centro-Serra, filha de uma professora e um agricultor, cresceu brincando de dar aulas, inclusive imitando o trabalho que a mãe fazia. Mas, no interior, não teria muitas perspectivas. “Nem todos os adolescentes da Serrinha Velha tinham oportunidade de estudar. Mas os pais faziam um enorme esforço para oferecer aos filhos a continuidade nos estudos, conscientes da sua importância”, conta a advogada, mestre em Desenvolvimento Regional, doutora e pós-doutora.

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Mãe de Fernando Augusto, Pedro Henrique e Ana Carolina Marion Spengler, é casada há 30 anos com o professor Theobaldo Spengler Neto, colega de escritório e de aulas no curso de Direito da Unisc. Autora de 33 livros e com dezenas de artigos publicados em renomadas revistas científicas, ela aponta as perspectivas e desafios para o ensino e pesquisa.

Entrevista – Fabiana Marion Spengler, professora no curso de Direito, mestrado e doutorado da Unisc

  • Gazeta – O que o trabalho como professora e advogada representa para a senhora? Primeiramente é o meu ganha-pão, mas, mais do que isso, é uma forma de realização profissional e pessoal. Gosto do que faço, não consigo me imaginar trabalhando em outra área. Minha profissão me permite lidar com pessoas e com uma consequência das suas relações: o conflito. Administrar conflitos é um dos grandes objetivos do Direito e do seu sistema de regras. O Direito também me permitiu exercer a docência. Somada à pesquisa, são dois aspectos importantíssimos da minha trajetória acadêmica. Enfim, eu amo o que eu faço! Sou uma profissional realizada!
  • Fale um pouco sobre sua origem. Como “virou a chave” para mudar de realidade vivendo no interior de Segredo?
    Sempre li muito e sempre gostei de estudar. Uma das minhas brincadeiras preferidas era a de professora. Brincando eu ensinava os vizinhos e colegas que tinham dificuldades na aula. Minha mãe é professora aposentada e eu gostava de imitá-la, ensinando meus “alunos”. Meu pai era agricultor e com ele aprendi coisas que não podem ser encontradas em livros. Honrar a palavra empenhada é uma das lições mais importantes que meu pai me deixou. Penso que, hoje, essa lição poderia ser desdobrada em comprometimento e responsabilidade. Minha mãe foi importantíssima na minha trajetória. Sempre me incentivou a ler e a estudar. Minha paixão pela leitura começou com as historinhas que ela contava, com uma riqueza de detalhes que me faziam imaginar as cenas e os personagens! Lembro até hoje do cheiro dos livros com os quais minha mãe me presenteava e da expectativa ao abrir os pacotes e iniciar a leitura. Recordo que meu presente de 14 anos foi a coleção completa dos livros do Érico Veríssimo (ao todo 28 volumes), que devorei em poucos meses!
  • No contexto social da época, havia perspectivas de seguir em frente? Quais os caminhos que tinha?
    Nem todos os adolescentes da Serrinha Velha tinham oportunidade de estudar. Mas os pais faziam um enorme esforço para oferecer aos filhos a continuidade nos estudos, conscientes da sua importância. Na Serrinha Velha, a escola chamava-se Escola Rural Berto Dal-Molin, não tinha Segundo Grau (hoje Ensino Médio). Quando eu terminei a oitava série, minha mãe me deu duas opções: a enxada ou o livro. Escolhendo a enxada, eu ficaria perto dos meus pais e dos meus irmãos; escolhendo o livro, eu poderia continuar estudando. Optei pelo livro e com 13 anos comecei a fazer o Ensino Médio em Sobradinho; depois fiz o vestibular para Direito na Unisc e fui aprovada. Logo no segundo ano de faculdade, tive a oportunidade de concorrer a uma vaga para atuar como bolsista junto ao Gabinete de Assistência Judiciária (GAJ) da Unisc. Agarrei essa oportunidade com unhas e dentes e lá trabalhei até iniciar o estágio. Nesse período, apaixonei-me pelo professor Theobaldo Spengler Neto, com quem divido, há 30 anos, a casa e o escritório, e de quem sou colega na docência da Unisc. Depois de formada, retornei ao GAJ da Unisc para trabalhar como supervisora de estágio, durante o período de licença-saúde da professora Juraida Salvatori, que depois acabou falecendo. Então, eu fiquei trabalhando lá como auxiliar administrativa.
  • Na sua trajetória de 26 anos como professora, o que mudou?
    Quando comecei, preparava lâminas para o retroprojetor; atualmente temos acesso a textos e aulas on-line, usando plataformas virtuais de comunicação e desenvolvendo aulas síncronas e assíncronas. Muita coisa mudou, o formato da aula, os conteúdos desenvolvidos, o modo de fixar a atenção do estudante, as atividades de aprendizado, entre outras coisas. Mas, devo confessar que gosto muito da interação presencial com o estudante, de observar a expressão corporal, a curiosidade, a ansiedade em conhecer, em tirar dúvidas.
  • Analisando o aspecto acadêmico e a pesquisa científica, quais são as perspectivas para quem segue por esse caminho?
    A academia brasileira tem se deparado com vários desafios, que vão desde a organização e o desenvolvimento da docência e da pesquisa até aquelas que envolvem o acesso a tais carreiras. Digo isso porque, atualmente, temos uma oferta muito maior de cursos de graduação, mestrado e doutorado em Direito. Isso possibilita o acesso ao conhecimento, mas, ao mesmo tempo, traz a possibilidade de realizar escolhas considerando a qualidade do ensino oferecido e a qualidade da pesquisa realizada.
  • Os cortes de verbas para bolsas de estudos têm sido recorrentes. E isso afeta muito a pesquisa, inclusive frustrando planos e contrariando políticas públicas educacionais. Como lidar com esse desafio?
    Esse é um grande desafio no quesito educação, talvez o maior da atualidade. Os cortes de verbas afetaram significativamente o acesso à graduação e à pós-graduação de maneira geral, mas também geraram dificuldades para a realização de pesquisas científicas. O acesso a bolsas e ao financiamento de projetos de pesquisa vem se estreitando sistematicamente nos últimos anos. Além disso, boa parte das bolsas ainda existentes não tiveram seus valores atualizados, encontrando-se completamente defasadas. Esse fato gera frustração, afastando o estudante e levando o pesquisador a buscar novos horizontes, mais férteis no fomento à pesquisa, ainda que isso signifique deixar o País. Além disso, os pesquisadores não são devidamente valorizados. Estamos perdendo mentes brilhantes pela falta de incentivo, falta de financiamento e falta de valorização!
  • De que forma a educação desde os níveis elementares, interfere na continuidade dos estudos na universidade, seja em graduação ou pós?
    A educação desenvolvida nas séries iniciais e no Ensino Fundamental e Médio interfere de modo direto na graduação e na pós-graduação. O estudante que traz lacunas/falhas de aprendizagem terá mais dificuldades para passar no vestibular e acessar a graduação. O mesmo movimento se verifica na pós-graduação. Essas dificuldades se potencializam quando o estudante tem problemas financeiros e precisa de uma bolsa (depende da aprovação pelo Prouni, por exemplo). Assim, é preciso investir na educação desde as séries iniciais, desenvolvendo, implementando e avaliando políticas públicas que preparem a criança e o adolescente para que possam acessar e cursar (com qualidade!) a graduação e a pós-graduação na fase adulta.
  • Nas salas de aula da graduação, por exemplo, quais são as dificuldades do ensino atualmente?
    É muito comum encontrar estudantes que tenham dificuldades de leitura e interpretação, o que se torna um grande desafio para a graduação, especialmente na área do Direito. Além disso, a própria linguagem, com a utilização de gírias e de redução das palavras, próprias das redes sociais, é um problema a ser enfrentado. Por fim, a cultura – considerando o conjunto de tradições contadas, escritas, faladas etc – é, perceptivelmente descuidada na trajetória educacional de alguns estudantes.
  • A que se deve isso?
    Talvez ao excesso de informação produzido nas redes sociais que, inegavelmente, são mais atraentes ao estudante. Talvez a educação devesse integrar conteúdos, práticas e vivências mais próximas ao aluno, tornando-se assim mais interessante. Tudo isso, é claro, sem se descuidar dos conteúdos essenciais, que não podem ser deixados de lado.
  • E da mesma forma que há limitadores, diante de sua experiência acadêmica, quais são as perspectivas para quem ingressa no Ensino Superior?
    Eu costumo dizer que, se está difícil conseguir um bom emprego e uma carreira estável para quem tem curso superior, para aqueles que não têm a dificuldade é maior ainda. O Ensino Superior abre caminhos e gera perspectivas de uma carreira promissora, com melhoria de renda e com vínculo empregatício formal. Além disso, desenvolve uma série de habilidades que o profissional não acessaria somente com a prática. Enfim, cursar universidade ainda é um ótimo negócio. Eu recomendo!
  • A senhora possui expertise no Direito da Família. Como família e educação podem atuar em sintonia e contribuir para o ensino?
    A família tem papel fundamental no bom desenvolvimento das atividades de ensino e aprendizagem. Ela deve se fazer presente, acompanhando o estudante e auxiliando-o nas suas dificuldades. Porém, nem sempre a família encontra-se estruturada, o que dificulta e diminui a chance de prestar esse apoio. Nessas situações entram as redes de apoio e as políticas públicas, que objetivam, entre outras coisas, fortalecer a família para que ela cumpra seu papel na educação da prole. Além disso, a família deve oferecer atenção, carinho e limites! A educação começa em casa!
  • A pandemia interferiu de modo decisivo no formato tradicional de ensino e pesquisa. A senhora já tinha vivências no modo on-line atendendo alunos de diferentes regiões do País. Mas isso virou realidade com as restrições sanitárias. Como esse fenômeno pode contribuir para o desenvolvimento do ensino?
    Sem dúvidas o ensino on-line pode contribuir encurtando distâncias, diminuindo custos e oferecendo hipóteses diversas de acesso ao conhecimento. É uma realidade que se descortinava, de modo gradual, e sofreu aceleração significativa com a pandemia. Ainda que a interação presencial entre estudante e professor seja essencial, devemos tirar partido das facilidades que o modo on-line traz para o ensino, adaptando-as às situações concretas e conforme as necessidades dos estudantes.
  • E os professores estão atentos às novas necessidades e realidade? Onde ainda é possível avançar do ponto de vista pedagógico?
    Sim, os professores foram impulsionados a trabalhar, em poucas semanas, com ferramentas completamente diversas daquelas a que estavam habituados. Me parece que ainda é preciso avançar oferecendo ao estudante e ao docente um acesso à internet de qualidade, instrumentos de manuseio da rede, tais como celular e computador, além de treinamento envolvendo a preparação de materiais de ensino adequados ao formato remoto. Esses são os desafios atuais, depois da pressão desenvolvida pelas questões sanitárias nos últimos dois anos. Agora, é necessário adaptar as práticas remotas ao “novo normal”, estruturando atividades e conteúdos que possam ser desenvolvidos com qualidade.
  • Quais seriam os fatores que mais comprometem o avanço do ensino neste momento em que a pandemia estabilizou-se?
    Parece-me que a falta de atenção do governo federal às questões educacionais é um fator muito importante. Observa-se que, antes da pandemia, a redução/dificuldades de acesso ao Fies já tinham feito um estrago considerável no acesso ao Ensino Superior. Atualmente, esse estrago foi potencializado pelas questões financeiras que o País atravessa, também potencializadas pela pandemia. Precisamos de mais investimento na educação disponibilizando bolsas de ensino e pesquisa, investindo na formação dos professores e oferecendo instrumentos e materiais específicos para o desenvolvimento do conhecimento nas mais diversas áreas do saber.
  • Estima-se que apenas 18% dos jovens brasileiros vão para a universidade. Essa é uma realidade que faz parte de uma conjuntura maior. O que falta para mudar esse cenário?
    Falta investimento na educação, oferecendo, como eu disse antes, financiamento e bolsas de estudo. Penso que as questões financeiras estejam em primeiro lugar na composição desse percentual de jovens que não fazem graduação e pós-graduação.
  • Já os que acessam os cursos de graduação nem sempre conseguem colocar-se no mercado como imaginaram. Como esse aspecto afeta a motivação para estudar e de que forma o professor pode colaborar para estimular os alunos?
    Primeiramente, o professor pode oferecer uma aula de qualidade, com planejamento estratégico junto às áreas de conhecimento que possui, apontando as hipóteses de inserção do estudante no mercado de trabalho. O aluno, por sua vez, precisa conhecer o mercado no qual pretende se inserir, investindo em inovação e tecnologia. Isso é algo que somente a prática aliada ao ensino e à pesquisa de qualidade podem gerar. O professor precisa ser generoso, compartilhando seus conhecimentos, suas descobertas e angústias com os estudantes. Agindo assim, ele estará compartilhando suas experiências e preparando o estudante de modo mais completo para enfrentar os desafios do mercado de trabalho.

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