Cartão-postal de Santa Cruz do Sul, a Praça Getúlio Vargas é famosa pela sua icônica e privilegiada paisagem, embelezada em especial pela Catedral São João Batista, ao fundo. Não à toa, tornou-se um ponto de parada obrigatório para os turistas que desejam fazer um registro fotográfico da sua visita na cidade.
Há mais de três décadas, o local sedia anualmente a Feira do Livro. Ao longo de vários dias, o coração da praça, no entorno do chafariz, é decorado pelos livreiros com suas estantes repletas de obras literárias para todos os gostos.
Mais do que uma atração turística já consolidada, e aguardada entre os proprietários de livrarias de todo o Rio Grande do Sul, a feira, desde a sua primeira edição, assumiu um papel fundamental. O acesso à literatura, assim como a programação cultural e a presença de escritores renomados, é pensado para fomentar o hábito da leitura entre a população de Santa Cruz e do Vale do Rio Pardo.
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Atualmente, a feira está consolidada no calendário do município e resiste a todos os contratempos (incluindo as chuvas, que teimam em se estabelecer no período do evento). No entanto, se ela superou as adversidades, foi graças à dedicação de quem lutou pela sua permanência.
Há tantas histórias da feira que elas poderiam render um livro.
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As primeiras edições e o desafio das chuvas
Em 1988, a Praça Getúlio Vargas recebeu a primeira Feira do Livro. Promovida pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) de Santa Cruz, com o apoio da Associação Pró-Cultura e do Departamento de Cultura da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (Smec), ela ocorreu durante três dias e foi destinada ao público infantil, em especial crianças das séries iniciais, sendo chamada, na época, de Feira de Livros Infantis.
O jornalista Luis Carlos Rehbein, ex-agente cultural do Sesc, afirma que a missão principal do evento foi o incentivo precoce ao hábito da leitura entre as crianças. Isso era feito por meio de atividades como oficinas literárias, encontros com autores e atrações artísticas, todas pensadas para envolver ao máximo a garotada.
Havia, segundo Rehbein, a necessidade de preencher uma grande lacuna na educação quanto à formação de leitores mirins. “O hábito da leitura precisava ser incentivado desde a infância para que o processo educacional tivesse cidadãos mais preparados, a fim de que a alfabetização se tornasse mais funcional”, ressalta.
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Parte da programação de 1988 foi impedida de ocorrer por um desafio que se tornaria recorrente até os dias atuais: as chuvas. A intempérie climática restringiu a participação das escolas, além de levar à suspensão de algumas atrações, incluindo a presença dos escritores.
Diante disso, em 1989, a feira passaria para o Pavilhão 2 do Parque da Oktoberfest. E a partir de 1990 até 1994 o evento foi transferido para as dependências do Sesc, por questões logísticas.
Rehbein conta que a participação da comunidade era mais restrita nesse período. O Sesc abria as inscrições para escolas municipais, estaduais e particulares. Cada uma tinha o seu dia. Por turno, era possível atender no máximo até 300 crianças, por limitações de espaço.
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Na época, o então agente cultural entendeu que, a exemplo da Feira do Livro de Porto Alegre, que ocorria na Praça da Alfândega, a de Santa Cruz precisava retornar para a Praça Getúlio Vargas. Também pensou em aumentar a duração, passando de três dias para oito. “Para mim, estava claro que havia um potencial muito maior para um evento com grande apelo popular se ocorresse durante uma semana inteira, manhã e tarde, inclusive no final de semana, em um local público”, diz Rehbein.
Iniciou-se um trabalho para efetivar essa possibilidade, em 1995. A proposta foi apresentada às livrarias, que a aprovaram. Em contrapartida, elas tiveram que providenciar bancas para abrigar o acervo de livros.
O principal desafio, conforme Rehbein, foi interno. Uma vez que o projeto vinha ocorrendo há sete anos em formato estabelecido por uma hierarquia superior do Sesc, ele estava propondo quebrar o padrão original. “A gerência local aceitou meus argumentos, mas temendo sermos descredenciados do apoio financeiro do Sesc Nacional e até do Sesc-RS, pela ousadia de afirmar que o projeto anterior tinha limitações e que o novo formato, sim, é que era o correto para as Feiras de Livros Infantis.”
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Apesar dos receios, a escolha arrojada mostrou-se certa. De acordo com Rehbein, os resultados da oitava edição, com o tema “Monteirices Lobatianas”, foram superiores a qualquer edição anterior. “As vendas, que raramente passavam de 300 livros, foram além de 4.600 exemplares. O público, que era de 300 a 400 pessoas por dia, por agendamento, saltou para mais de 10 mil. Viramos destaque nacional.”
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O ano de 1995 representou uma nova era para o evento
O sucesso da edição de 1995 garantiu a consolidação da feira na Praça Getúlio Vargas. A cada ano, diferentes temáticas ilustravam o evento, de homenagem a Mario Quintana a lendas brasileiras e contos de fadas. Em 1998, novos parceiros engajaram-se, incluindo o Sesi e as livrarias locais, que se uniram para formar a Associação das Livrarias do Vale do Rio Pardo (Alivarp).
Neste ano, Santa Cruz teve uma feira do livro paralela, que havia sido realizada pelas livrarias e se uniu à Feira de Livros Infantis do Sesc a partir de 1999. Ainda que com nomes distintos, passaram a dividir o espaço, a data e até material de divulgação. Isso permitiu otimizar os recursos e obter mais êxito, além de oferecer livros para todos os públicos, não só para as crianças. Era o passo rumo ao formato atual da celebração da leitura.
Em 2005, a união foi consolidada com a efetivação do nome Feira do Livro de Santa Cruz do Sul. O projeto foi aprovado pelo Sesc na Lei Estadual de Incentivo à Cultura (LIC-RS), com apoio da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), da Prefeitura e da Gazeta Grupo de Comunicações.
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Os gigantes estiveram em Santa Cruz
Com a chegada do novo milênio, iniciou-se importante fase na história da Feira do Livro. Em 2004, o evento precisou sair da Praça Getúlio Vargas e voltar para o Pavilhão 2 do Parque da Oktoberfest devido às chuvas. A estrutura abrigou a área dos livreiros e atividades, incluindo a leitura de contos e exposições temáticas. Já espetáculos e encontros com escritores ocorreram no Pavilhão Central.
Entretanto, a ideia de “esconder” a feira em local fechado, longe da praça, era vista como decisão temporária. Para o ano seguinte iniciou-se mobilização para que voltasse a ocorrer a céu aberto, no coração do município.
Roberta Pereira, agente cultural do Sesc na época, via a necessidade de tornar a feira evento mais acessível para toda a população. Para isso, era necessário voltar com força total à Praça Getúlio Vargas, o que aconteceu em 2005, ano em que o evento foi unificado e passou a se chamar Feira do Livro de Santa Cruz do Sul.
A data também ficaria marcada por importante reviravolta e geraria maior visibilidade fora da região. Com a celebração de um século do escritor Erico Verissimo, seu filho, o jornalista Luis Fernando Verissimo, foi escolhido para ser o patrono.

A partir disso, a organização passou a chamar grandes nomes da literatura nacional e internacional. Moacyr Scliar, João Ubaldo Ribeiro, Affonso Romano de Sant’Anna, Lira Neto, Thiago de Mello e o chileno Antonio Skármeta foram alguns dos escritores que visitaram Santa Cruz.
Para Roberta, a presença desses autores, que ela admirava, proporcionaram alguns dos momentos mais marcantes. “Muitos infelizmente já morreram, mas estiveram aqui, passearam, tomaram café. São momentos que nunca vou esquecer”, enfatiza. Para ela, há tantas histórias, que merecem ser compartilhadas em um livro de memórias.
A presença desses nomes se deu pelo trabalho de voluntários, entusiastas da leitura, que fizeram com que a Feira do Livro de Santa Cruz se tornasse um evento conhecido em todo o País. Um deles foi o professor Rudinei Kopp, que passou a atuar na comissão organizadora da feira a partir de 2005. Ele e o jornalista Romar Beling, gestor de Conteúdo Multimídia da Gazeta Grupo de Comunicações, sondavam os autores e os convidavam.
Entre os momentos memoráveis de Kopp, um envolve o escritor João Ubaldo Ribeiro e sua esposa, Berenice. Durante a estadia deles em Santa Cruz, Kopp viu o baiano entrar em roda de chimarrão, pegar uma cuia e começar a tomar. “Amanhã vão dizer que o João Ubaldo estava tomando mate no Rio Grande”, segredou o escritor a Kopp.
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Depois da tempestade, a consolidação
Ano após ano, a Feira do Livro atingiu novos patamares, consolidando-se como um importante evento cultural do Estado. Com o passar do tempo, novos nomes passaram a colaborar, garantindo seu desenvolvimento à cada edição.
Lisiane Camargo, agente de programas sociais do Sesc, passou a atuar na Feira do Livro de Santa Cruz do Sul em 2018. Desde então, contribui para a curadoria da programação, além de fortalecer o papel do Sesc como parceiro na promoção da leitura e da cultura no município.

Além de testemunhar a evolução do projeto, esteve à frente em momentos desafiadores enfrentados nos últimos anos. Com a pandemia, a Feira do Livro não pôde ser realizada. No entanto, ela se reinventou, com a concretização de ações on-line, incluindo narrações de histórias e o projeto Prosa Cultural, que trouxe escritores convidados em encontros virtuais.
Com o fim das restrições sociais impostas pela Covid-19, o evento parecia voltar com força total. No entanto, no ano passado, a organização enfrentou um episódio extremamente difícil, diante das enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul. A abertura oficial foi realizada, mas, em virtude das chuvas, as atividades foram transferidas para a estrutura do Sesc. Já no terceiro dia, o evento foi oficialmente cancelado.
Lisiane recorda que muitos escritores e livreiros ficaram ilhados no município. Segundo ela, alguns enfrentaram perdas significativas em suas casas e estabelecimentos nas regiões mais afetadas do Estado. “Foi um momento de dor, mas também de solidariedade. Os próprios guarda-chuvas literários usados na decoração deste ano na feira simbolizam essa travessia, essa proteção diante da tempestade”, salienta.
Porém, assim como ocorreu na pandemia, a Feira do Livro resiste e permanece. Prova de sua força é que em 2025 ela se internacionalizou e contará com escritores de três países diferentes. Isso evidencia, segundo Lisiane, a pluralidade do evento. “Considero a maior feira literária da região e uma das mais importantes do Estado. A comunidade espera ansiosamente pelo evento todos os anos”, afirma.
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Parcerias estabelecidas na feira
Parcerias decorrentes da Feira do Livro de Santa Cruz alcançaram projeção nacional e internacional. Uma das mais inusitadas é a que resultou na película O Filme da Minha Vida, dirigido por Selton Mello e que constitui a adaptação do romance Um pai de cinema, do chileno Antonio Skármeta. E ela envolve também a Gazeta.
Ocorre que o jornalista Romar Rudolfo Beling, da Gazeta, havia entrevistado Skármeta em 2001, em Berlim, quando este era embaixador de seu país na Alemanha. E novamente o entrevistara em 2011, em Santiago do Chile. Na ocasião, o escritor manifestara interesse em conhecer Santa Cruz. De volta, Beling apresentou a ideia à comissão organizadora da Feira do Livro, da qual participava. E esta aceitou a proposta. Em 2012, Skármeta foi o patrono da feira.

Já em Santa Cruz, o escritor mencionou com Romar que adoraria que seu romance Um pai de cinema fosse ambientado aqui. Beling contatou a produtora Bananeira Filmes, do Rio, e propôs que Selton Mello, então em voga por conta de O Palhaço, fizesse a adaptação. Não deu outra. Produtora e diretor aceitaram. Em 2013, Skármeta retornou a Santa Cruz, no lançamento da antologia Nem te conto, organizada por Beling e Rudinei Kopp, e Selton veio especialmente a Santa Cruz para reunião, realizada no restaurante do Hotel Charrua, a fim de alinhar a parceria com Skármeta. Beling participou desse encontro.
Nas tratativas, as filmagens acabaram acontecendo em Bento Gonçalves e outras regiões da Serra Gaúcha, pois contatos públicos e privados a fim de viabilizar a produção em Santa Cruz não avançaram. Pelo reconhecimento de ambos, Skármeta e Selton, à providencial intervenção do jornalista da Gazeta, Beling e sua esposa Daniela Neu inclusive acompanharam as gravações na Serra, em oportunidade na qual Skármeta fez aparição como ator em algumas cenas. Em 2017, O Filme da Minha Vida estreou com pompa e sucesso, tendo repercussão de mídia e público dentro e fora do País.
Ainda da relação de Skármeta com Santa Cruz decorreu uma parceria musical com o santa-cruzense Killy Freitas, que musicou letras de autoria do chileno, numa afinidade natural entre ambos que se estendeu ao longo dos anos. A parceria resultou no álbum Café Frio, lançado em Santiago do Chile e em Brasília, com elogios de crítica.
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O patrono que deu um show

A presença do escritor e jornalista Luis Fernando Verissimo resultou em um dos momentos mais marcantes da história da Feira do Livro. Patrono da 18a edição, em 2005, o renomado autor mostrou-se tímido diante dos microfones, chegando a desculpar-se à multidão que o acompanhava durante a sua homenagem.
No entanto, apesar de seu perfil mais reservado, destacou a importância de eventos como o de Santa Cruz para disseminar, especialmente entre os jovens, o gosto pela literatura. “Não tenho jeito para falar em público, mas sempre aceito quando me convidam para feiras do livro. Acho importante esse contato do escritor com o leitor. É uma maneira de a gente participar da luta pela leitura.” A timidez foi deixada de lado quando Verissimo mostrou aos santa-cruzenses seu talento musical. Durante sua estadia no município, realizou duas apresentações com sua banda, a Jazz 6, uma delas no Teatro Mauá.
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