Guardei um momento da fala do professor Elenor Schneider no último dia da Feira do Livro, na Praça Getúlio Vargas. Homenageado este ano como personagem incentivadora da leitura – algo mais do que merecido, como sabem seus incontáveis ex-alunos –, fez uma analogia interessante para tratar de literatura e memória.
Certamente, ele não podia recordar tudo que já lera. Mas alguém consegue reter na lembrança o que comeu há dois meses, por exemplo? Ou há duas semanas? Provavelmente não, mas seja o que for serviu de alimento, deu-lhe energia e vida. Assim acontece com livros e leituras.
Também há aqueles textos que você nunca mais esquece. No caso de Elenor, alguns são Crime e castigo, de Dostoiévski, e os contos de Machado de Assis. Então somos dois. Machado escreveu um conto que lembro de tempos em tempos. Chama-se “O caso da vara” e foi publicado originalmente em 1891.
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Questões de 2025 trouxeram-no de volta.
A história se passa ainda no Brasil escravocrata, por volta de 1850. O jovem Damião foge do seminário e se esconde na casa de uma conhecida influente, Sinhá Rita. Pede a ela que interceda em seu favor, convencendo seu pai de que lhe falta vocação para a vida religiosa. Ao mesmo tempo, o rapaz conhece Lucrécia, escrava doméstica de Rita. É uma criança, nitidamente alvo de agressões.
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“Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos.” Ele sente de imediato que deveria protegê-la, levá-la a um ambiente seguro.
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Porém, em um momento crucial, Sinhá Rita decide punir Lucrécia diante de Damião – e pede o auxílio deste. “Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?” Cabe a ele trazer o instrumento de castigo. Sente-se consternado e mesmo culpado, mas o interesse pessoal fala mais alto: ele precisa do apoio daquela mulher. Resignado, enfim, Damião aceita colaborar com a violência.
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Isso me veio à memória após denúncias recentes de exploração infantil, outra violência persistente. Nos últimos anos, um influenciador com 25 milhões de seguidores publicou diversos vídeos expondo adolescentes e crianças de forma erotizada. Alguns até moravam com o “produtor de conteúdo” – com a permissão dos pais. Em troca, sabe-se, de “presentes” e outras vantagens.
O interesse pessoal fala mais alto que qualquer consideração moral. E assim “O caso da vara”, de Machado, impõe-se como uma aula de Brasil.
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