Assim como existe a luz, há a escuridão – o lugar onde vivem os monstros. Crianças pequenas temem o que pode se esconder à noite, nas sombras. Adultos também, em determinadas situações. Mas, como o mundo é complicado, o mais corriqueiro é que tudo se confunda. Olhe diretamente para uma fonte luminosa e você não enxergará nada, assim como nas trevas. Pior ainda, talvez queime suas retinas.
Um pouco de ambiguidade nunca fez mal a ninguém. No romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, a perda da visão chega na forma de um “branco absoluto” que apaga tudo ao redor. Embora a luminosidade seja associada à verdade e à virtude (e isso em diferentes culturas), ela não traz nada de positivo aqui. Talvez porque, quando tratadas de maneira absoluta, verdades e virtudes – ou seja lá o que passe por isso – também são capazes de cegar.
Em O sol é para todos, clássico da literatura norte-americana escrito por Harper Lee (que virou filme também célebre), Atticus Finch é um advogado respeitado em Maycomb, Sul dos EUA. Seus dois filhos pequenos gostam de explorar a vizinhança, sobretudo as redondezas de uma casa sempre fechada onde, dizem, mora um criminoso repugnante chamado Boo Radley.
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As crianças nunca viram o rosto de Radley, pois ele vive isolado, mas sempre imaginam o quão pavoroso deve ser. A casa é precária, feia, sinistra; parece um perfeito esconderijo para seres monstruosos.
Enquanto isso, Atticus trabalha na defesa de um homem negro acusado de estuprar uma jovem branca. Metade da população pacífica e ordeira de Maycomb quer linchá-lo. No entanto, o advogado percebe que há bem mais racismo e ressentimento do que crime nesse caso. Postura que vai lhe trazer consequências: intimidações, ameaças contra ele e sua família, enfim, a “morte social” – o desprezo de sua comunidade, que antes o admirava e invejava.
O bem-sucedido Atticus agora é um pária, um indesejado. Vale reforçar que estamos no Sul dos Estados Unidos, e em 1932. Onde estava a luz? Talvez nas fogueiras da Ku Klux Klan. Lá pelas tantas, o misterioso Boo Radley vai aparecer e influenciar os rumos da história.
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Entre o louco solitário e os cidadãos “respeitáveis”, o leitor não tarda a descobrir quem são os monstros. E do que são capazes. Pois literatura serve também para isto: desestabilizar ilusões de fachada. Sobretudo a ilusão da própria superioridade moral, mãe zelosa de todos os preconceitos.
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