Uma cultura que já legou à humanidade expoentes como Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo e Julio Cortázar requer total e absoluta consideração de parte dos leitores. Essa mesma literatura, a da Argentina, segue posicionada na vanguarda, com autores traduzidos para as mais variadas línguas e sendo finalistas dos principais certames globais. Nesse conjunto, um nome paira em destaque: Claudia Piñeiro. Aos 65 anos, essa roteirista, dramaturga e escritora festeja a projeção de sua obra.
As viúvas das quintas-feiras foi seu primeiro título no Brasil, pela Alfaguara, em 2007. Depois a Verus publicou Betibu, em 2014, e Tua, em 2015. Passou a aparecer entre os finalistas de prêmios como o Man Booker Prize International, em 2022, com o romance Elena sabe, no Brasil editado pela Morro Branco em 2024. Neste mesmo ano a Primavera colocou nas livrarias Catedrais, romance muito elogiado.
Mais recentemente, em junho deste ano, a mesma Primavera lançou volume de textos de não ficção de Claudia, Escrever um silêncio. É a oportunidade de ter acesso a reflexões em formato de ensaio ou crônica dessa escritora que é referência para a nova geração de autores argentinos, a exemplo de Samanta Schweblin, Mariana Enriquez e Ariana Harwicz. Sobre a sua obra e o momento cultural da Argentina, Claudia Piñeiro concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul, por WhatsApp. As respostas foram concedidas em espanhol, e na tradução foi aproveitado recurso digital.
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- Gazeta do Sul – A editora Primavera acaba de lançar no Brasil um livro da senhora com textos de não ficção, Escrever um silêncio. Qual foi o propósito ao reunir esse conjunto, e que período ele contempla?
Claudia Piñeiro – Na verdade, o livro surge porque, depois de por muitos anos ter escrito não ficção no meio de projetos de ficção, eu tinha muitos textos publicados em revistas, em periódicos, além de discursos que fiz em feiras de livros, congressos etc. E minha editora, pessoas da equipe editorial e conhecidos me sugeriam: por que eu não os reunia em um volume. O que havia é que eu teria de escolher quais.
Digamos que são textos produzidos ao longo de 20 anos, e o que tentei fazer foi buscar os que ainda falam ao presente. Ou seja, há textos do passado que seguem falando ao presente e há textos bastante próximos que já não falam ao presente. Nessa busca, fui selecionando os que me parecia fazer sentido que continuassem sendo publicados. No conjunto, portanto, são textos que abarcam cerca de 20 anos de carreira.
Por outra parte, e mesmo que não fosse o objetivo, percebi que muita gente os lê quase como se fosse um texto autobiográfico. Porque na ficção não falo de mim; ou seja, os personagens não são nem eu, nem minha família, nem meus filhos, nem nada. Então, quando se lê esses textos reunidos em Escrever um silêncio, sente-se que há algo de pessoal, sobre as coisas que me importam, os afetos, o que leio, o que escrevo, o que me preocupa, e me surpreende como isso é lido em chave autobiográfica.
Quem os for ler verá que são textos de não ficção, em geral, falando sobre questões da conjuntura, da literatura, do que acontece no meu país, do que acontece no mundo, mas são todos olhares muito pessoais. Acho que é por isso que encontram essa questão quase autobiográfica. - A senhora contempla obras e autores de sua predileção ou que a influenciaram. Entre eles (autores, obras), quem particularmente a senhora mencionaria?
Bom, mencionaria muitos, mas acho que em especial Natalia Ginsburg. Eu já a citei bastante e é uma das autoras que gosto de ler de novo o tempo todo. O mesmo ocorre com Clarice Lispector. Essas duas autoras faço questão de citar, porque durante a pandemia me acompanharam muito, não porque havia lido coisas novas delas (já tinha lido quase tudo), mas porque voltava a textos anteriores, e me acompanharam em um momento no qual me custava começar a ler coisas novas. Assim, eu voltava a esse refúgio, a textos de Natalia Ginsburg ou de Clarice Lispector. - Como se encontra na atualidade o mercado editorial na Argentina? Existe também o debate entre a permanência do impresso ou um avanço do digital? Como a senhora tem acompanhado esse cenário?
Na Argentina, estamos passando por uma crise econômica importante. E o mercado editorial sofre essa mesma crise, não? A gente não consegue chegar ao fim do mês muito tranquilo. Algumas pessoas não têm para comer, há outras que reduzem questões relacionadas com o sossego, com sua leitura, com um monte de coisas. Então, o mercado inevitavelmente se retrai quando há uma crise econômica.
De todos os modos, a Argentina continua sendo um país muito leitor. Pode-se ver as pessoas na rua lendo; o livro continua sendo um bem apreciado. Às vezes, não se entende como alguém que não chega muito bem com suas contas ao fim do mês vai e compra um livro. O sistema de biblioteca continua funcionando bem. Então, os leitores acho que continuam apoiando, buscando a leitura, refugiando-se na leitura. Mas, evidentemente, o dinheiro é bastante mais escasso.
Nesse sentido, o digital é muito mais econômico que o livro em papel. E se poderia dizer que há mais possibilidades. Por outra parte, você tem que ter um dispositivo para ler. E não tem o crescimento que eu acho que se imaginava ter. Acho que continua havendo a preponderância do livro em papel. Eu, em particular, prefiro ler em papel. O que acontece é que, como viajo muito, por vezes me resulta prático ter livros em formato digital para não precisar estar transladando textos que preciso ou quero ler. Basicamente, me interessa ter os textos em formato digital quando estou envolvida em uma viagem. - Da literatura argentina, a quem a senhora se sente mais irmanada ou aproximada? Com quais autores mais conviveu?
Não sei se sua pergunta tem a ver com amizade ou se tem a ver com sentir-se irmanado como literatura. Eu, dos grandes mestres, sempre cito Manuel Puig, porque me parece que tem algo que me atrapalha e também gostaria de ter na minha literatura, que é essa coisa de contar o cotidiano. Dos autores mais consagrados, acho que é aquele do qual me sinto mais próxima. Já o citei em epígrafe e fiz referência muitas vezes aos textos de Manuel Puig.
Depois, tenho muitos amigos na literatura, amigos que leio e admiro, como Guilherme Martínez, Sergio Olguín, Selva Almada, Gabriela Cabezón Cámara, Dolores Reyes, Samanta Schweblin, Mariana Enriquez, Mariana Travacio, Jorge Consiglio, Luís Sagasti. E são todos autores que sinto mais ou menos próximos em uma amizade que tem a ver com a literatura, que admiro e leio.
E com a literatura brasileira, como era a relação? Quando passou a ter maior contato com essa produção, e a quem leu?
Na literatura brasileira, temos o problema da tradução, pois nem tudo estava sempre traduzido. Clarice Lispector, que já citei, sempre a leio e, por sorte, temos muito dela traduzido, deve até estar quase tudo dela traduzido. O que aconteceu é que nos últimos anos me determinei a estudar português. Já havia estudado há alguns anos, mas recentemente me dediquei mais. E, basicamente, o que faço nas minhas aulas de português é ler literatura escrita em português.
Assim, cheguei a autoras como, por exemplo, Carla Madeira, que não sei se está traduzida em espanhol, mas aqui não circulam seus livros traduzidos. Tive a sorte de ler autoras mais contemporâneas, de que gostei muito e não havia tido a oportunidade de ler. Não sei se estão traduzidas ou não, mas li em português. Torto arado também, de Itamar Vieira Junior. Há muitos livros que circulam, que estou lendo em português, pois estudo português.
Aproveito tudo o que encontro traduzido. Agora há muitos também de Ana Paula Maia, que leio em castelhano. De Paloma Vidal também, uma autora que é argentina-brasileira, e seus livros circulam por aqui. Ou de Andréa del Fuego, cujos livros circulam bastante em castelhano, e me interessa muito.
O primeiro livro que li na minha aula de português foi Budapeste, de Chico Buarque. Gostei muito. Gostei em especial da reflexão sobre a língua húngara, que é muito, muito complicada, difícil de traduzir e, bem, é justamente a língua do último ganhador do Prêmio Nobel [o romancista László Krasznahorkai]. - Sua obra tem merecido atenção na cena internacional, inclusive selecionada em certames como o Man Booker Prize. A partir disso, a senhora tem viajado muito?
Viajei muito depois do Booker Prize, mas também já o fazia antes. Tive que viajar bastante e tive a sorte de que meus livros fossem traduzidos em muitas línguas. Estão traduzidos em 33 línguas. É claro que a visibilidade do Booker Prize fez com que se traduzisse em outras línguas, em que ainda não estavam, como o coreano ou o chinês.
Mas eu já viajava antes disso por muitos lugares, porque os livros estavam sendo traduzidos de forma muito consistente. É muito interessante, porque primeiro há o contato com tradutores, revisar outra vez a língua com eles: “por que usaste uma palavra ou usaste outra?” Depois, com os leitores que se encontra nesses lugares.
De alguma forma, há uma quebra de uma cronologia, que em sua própria língua é como se estivesse… muito estática. Você publica um livro, depois outro, depois outro; então, quando vai falar, sempre fala do último. Aqui, você pode ir a um país e falar do primeiro que publicou, porque o traduziram recentemente, ou do último. Há uma mistura; estão todos os textos vivos. Ao ver tantas línguas onde estão publicando os textos, você tem a sensação de que estão vivos. - Em Catedrais, publicada no Brasil pela editora Primavera, tem-se história marcada por um aborto clandestino. É um tema sobre o qual a senhora tem se manifestado (está também em Elena sabe), e que teve a aprovação, em 2020, de lei que legaliza o aborto na Argentina. É um assunto que a sociedade hoje já assimilou no País?
Com relação ao aborto, quando escrevi Elena sabe, em 2007, sobre esse tema, a sociedade não estava tão aberta para debater o assunto, a palavra estava proibida. Quando lancei Catedrais, em 2020, já era outra a situação. Em 2018, o aborto não havia sido aprovado, mas em 2020 se conseguiu. Então, era outra sociedade, totalmente diferente da que leu Elena sabe, e, naquele momento, a que leu Catedrais, em 2020, e a que voltou a ler Elena sabe depois do Booker Prize. Nesse sentido, era interessante ver esses mudanças.
Claro que nós, mulheres argentinas, estamos orgulhosas de ter conseguido esse direito. Mas também muito atentas às forças conservadoras que hoje não só estão na Argentina, mas em diferentes partes do mundo, e estão todo o tempo ameaçando que vão mudar esse direito, ou limitá-lo de alguma maneira. Mesmo que a lei esteja aprovada na Argentina, estamos sempre atentos a que se cumpra o que se precisa fazer para que qualquer mulher tenha acesso ao aborto legal seguro e gratuito.
É preciso que os hospitais tenham a medicação necessária para levar adiante a prática, e que se chama Misoprostol. Em alguns momentos, mostra-se mais complicado na Argentina ter essa medicação. Agora, parece que se regularizou bastante, mas sempre seguimos o tema com muita preocupação, sobretudo porque os discursos de nosso presidente [Javier Milei] são muito anti-direitos das mulheres.
A senhora também tem se manifestado em debates sociais na Argentina, e os traduz em suas obras de ficção, a exemplo de Elena sabe. Como a senhora avalia o atual momento em seu país?
O momento político do meu país é, do ponto de vista da cultura, gravíssimo, onde somos atacados permanentemente, pelo governo e pelo presidente. Somos consideradas pessoas pouco interessantes para a sociedade. Sempre há agressões para qualquer pessoa da cultura, para jornalistas, para artistas.
Então, é uma situação complicadíssima. Mas também é para a educação pública, que é um dos orgulhos que temos. Também é para o sistema de saúde pública, outro orgulho, e que os preços… Por exemplo, num hospital, como é o Hospital para Crianças, um dos mais importantes da América Latina, os preços foram reduzidos de uma maneira imperdoável e, além disso, quando o Congresso aprova leis para que isso não aconteça, o governo as veta.
O mesmo em relação a pessoas descapacitadas. O Congresso aprova as leis, o governo as veta permanentemente, dizendo que tudo é por superávit fiscal, para que haja superávit fiscal, para que não haja déficit fiscal. Enquanto isso, o dinheiro sai por outros lugares, e há também denúncias de corrupção e dúvidas sobre a honradez das pessoas que manejam esses fundos e para onde vão esses fundos. A situação é dramática, com muita gente dormindo na rua, com muita gente fora do sistema, e não se vê, por enquanto, que vá melhorar. - Como a senhora avalia as lutas das mulheres, na Argentina e em outras nações, em particular na América Latina? As conquistas havidas a tranquilizam, ou ainda há muito a fazer?
O problema não é só que há muito para fazer ainda na luta das mulheres. Por nossa parte, nós, mulheres, ainda não alcançamos a igualdade com os homens, nem quanto ao salário, nem quanto aos direitos e às oportunidades. Estou falando do mundo ocidental, que é o que conheço. E, se vamos a outras partes do mundo, as diferenças podem ser ainda mais graves.
Mas, além de não chegarmos a um ponto de paridade total, o que se vê em diferentes países é a intenção de retroceder. E isso é o grave. Há manifestações de retrocesso na Espanha, nos Estados Unidos e, claro, na Argentina. Então, não só não alcançamos um ponto de igualdade (e a luta continua para conseguir todos os direitos que fazem com que uma mulher tenha exatamente as mesmas possibilidades que um homem), como estamos atentas para não perder algumas dessas conquistas. Porque o ciclo histórico que estamos vivendo agora indica forte ameaça nas discussões dos direitos que já temos e sobre os quais não estamos dispostas a retroceder, claro. - O que particularmente inquieta a senhora no universo da governança no mundo na atualidade?
Me preocupa a censura, me preocupa a desigualdade de oportunidades, me preocupa o ódio pelas mulheres e pelos grupos LGBT. Todas essas coisas me preocupam muito. E também o desprezo do governo do meu país pelas questões relacionadas com as mudanças climáticas. - A senhora já participou da Feira do Livro de Porto Alegre. Como é a relação com a literatura do Rio Grande do Sul e com os autores desse Estado?
Em minhas aulas de português li vários contos e relatos curtos de autores que, pelo que sei, são dessa área. Natália Borges Polesso, Vitor Ramil, Caio Fernando Abreu, Luis Fernando Verissimo (dele li a novela O clube dos anjos), Martha Medeiros (dela li uma crônica), e de Arthur Telló, Os cadernos de solidão de Mário Lavale. Enfim, li de tudo um pouco. Talvez algum não seja do Estado, porque não sei bem de onde é cada um dos autores… - Na ficção, está em meio a algum novo trabalho? O que tem ocupado a senhora em termos de produção?
Por esses dias comecei a escrever minha próxima novela…
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