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ASSUNTO DE PROFESSOR

Nestor Raschen: “A escola é uma parceria entre família e comunidade”

Seu Nestor fotografado na escola no momento em que turma de alunos o cumprimentava | Foto: Karina Nascimento

Filho de agricultores de Trombudo, então distrito de Santa Cruz do Sul e hoje pertencente a Vale do Sol, por muito pouco o professor Nestor Raschen, diretor geral do Colégio Mauá, não interrompeu os estudos na 5a série primária. Uma vez que seus irmãos não haviam seguido adiante nas aulas, os pais concluíram que ele, o mais jovem, também não deveria continuar. Foi com uma visita e o pedido do então diretor da escola, seu Eli Carvalho Nunes, por recomendação do professor Dario Hennig, que os pais dele mudaram de ideia.

É com essa consciência de quanto o estudo pode determinar uma  história pessoal que seu Nestor, aos 62 anos, conduz o colégio, que completa 152 anos na próxima quarta-feira, 27. Com formação no magistério, em nível de 2o grau e catequese, Raschen chegou ao Mauá em 1980, a convite do então diretor Hardy Elmiro Martin. As aulas ainda eram no prédio do centro, e em 1981 ocorria a transferência para o novo complexo. Já em 1987, aos 27 anos, tornou-se vice-diretor, função na qual ficou até 2013, para então passar a diretor geral, até os dias atuais.

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Raschen: “Humanizar é aprender conteúdos que promovam a inclusão, a corresponsabilidade pelos direitos humanos e a justiça social” | Foto: Alencar da Rosa

Em 1986, Raschen ainda concluiu o curso de Letras e fez uma pós em Administração Escolar. Integra a diretoria do Sindicato do Ensino Privado do Estado (Sinepe/RS), devendo tornar-se o 1o vice-presidente na próxima gestão. Também participou de missões educacionais em Israel, Alemanha, Argentina e Chile. Nesta entrevista, reflete sobre o que representa estar à frente de instituição com 2.170 alunos e 307 colaboradores, dos quais 161 professores, e da importância, sempre inalterada, da educação. 

Entrevista – Nestor Raschen, diretor geral do Colégio Mauá

  • Gazeta do Sul  Quais foram os grandes aprendizados que o período da pandemia legou ao ambiente escolar?
    Nestor Raschen – Aprendemos que a vida nos apresenta surpresas que podem desequilibrar um universo de rotinas e de valores, e a necessidade da resiliência para ajustes criativos e inovadores com o propósito de reconstruir novos caminhos. O que era não é mais.
    Aprendemos a real oportunidade da prática da solidariedade entre todos. O Colégio Mauá criou o lema: ‘EU CUIDO DE VOCÊ E VOCÊ CUIDA DE MIM’. Na prática, esse lema assumido mobilizou os professores, os estudantes e as famílias para uma responsabilidade consigo e com o outro numa nova dimensão. Pois a vida é o bem maior a ser cuidado.
    Aprendemos a nos reinventar com o  uso da tecnologia educacional na modalidade remota. Tanto professores, funcionários, estudantes e famílias tiveram que se organizar num contexto novo para o trabalho e os estudos. A tecnologia a serviço do aprendizado teve avanços não experimentados até a pandemia.
    Aprendemos a valorizar o abraço que recebe e se doa. A falta do abraço limita a energia humana, a disposição e o acolhimento. Que a convivência é uma necessidade, pois promove caminhos para o sentido da vida que se quer plena. Não basta existir, é preciso viver. O viver ocorre no encontro, no viver com.
  • A escola saiu fortalecida desse período? Como o senhor vê o sistema de ensino num antes e num depois da pandemia?
    Aprendi, desde minha infância, que as tempestades fortalecem e desafiam para a superação de muitos desafios de nossa realidade. A pandemia nos mostrou que a escola é um espaço insubstituível para o desenvolvimento integral do ser humano. Ficamos muito tempo com as escolas fechadas, e os prejuízos na aprendizagem ficaram evidentes.
    Antes da pandemia, trabalhávamos em termos de planejamento e de previsibilidade das circunstâncias muito conhecidas e prováveis. O Colégio Mauá, que possui, em seu DNA, o fermento da criatividade, da inovação e uma rotina de demandas se viu desafiado a ser escola na casa do aluno. Na pandemia, se confirmou com muita evidência que a qualidade da educação está em uma simbiose com a relação pessoal. Somos seres de relações. Na dimensão dessa relação, do encontro e até do desencontro real com experiências pessoais se constroem, de fato, a formação, os valores e a dignidade da pessoa, da vida. Sou o que sou, sempre na dimensão do outro e numa interdependência natural e impulsionadora de caminhos para a busca constante do meu crescimento, do meu realizar no encontro do outro e sua promoção.
    A tecnologia, por mais eficiente recurso nos processos de trabalho, creio, jamais substituirá o brilho do ‘olho no olho’ de quem acolhe o semelhante para o diálogo e para os desafios de nosso universo pessoal e social.
  • Que papel a escola cumpre hoje em sociedade? É o mesmo que ela teve no passado, ou outro?
    A escola assume o papel fundamental da socialização dos estudantes numa parceria com a família e a sociedade. O aprendizado da convivência, ou seja, viver e deixar viver numa mútua responsabilidade. Diz um provérbio africano: “É preciso uma aldeia para se educar uma criança.” Ou seja, a complexidade envolvida nos processo cognitivos e emocionais convocam o envolvimento de todos. Não há como imputar à escola a tarefa de construir o conhecimento de forma isolada. Isto cabe a toda a comunidade e o que importa é a consciência ativa no horizonte da edificação do aprender a conhecer, a fazer, a ser e a conviver. São esses os pilares apontados pela UNESCO para a formação da pessoa para o século 21.
    A escola assume o desafio pela consciência cidadã de cada estudante. Aprender a viver cidadania exige participação, presença, valores e princípios fundamentais que vão muito além do sujeito em seu ambiente mais restrito para abrir-se como integrante, incluso e responsável por melhorias na sociedade.
    Em relação aos propósitos da educação do passado com o tempo presente, há uma significativa mudança. O paradigma mudou. No passado, o professor detinha o conhecimento para ensinar, e o aluno apenas recebia, o aluno como um receptor passivo, portanto, sem ser sujeito essencial do processo. Ou seja, um ensino formal, centralizado no professor, e o aluno recebendo informações.  Hoje, sabemos que apenas informações não produzem processos de domínio de conhecimentos, de competências e de habilidades para a construção de sujeitos ativos, participantes, envolvidos e engajados em demandas que exigem a busca de novos olhares, novas soluções, num mundo em acelerada transformação.
    Hoje, a atuação de professor e estudante acontece na simbiose de uma relação participativa de ambos, na compreensão do ensinar e aprender numa constante que acontece tanto para o professor quanto para o estudante. Ambos são sujeitos pelo conhecimento que se oportuniza na relação de mútuo compromisso, de amor, de desafios. Nesta relação, o amor é o que move o sentido da realização humana para a felicidade, torna-se o fundamento. Como já dizia Paulo Freire, “não há educação sem amor”.
  • E o papel que ela deve cumprir de agora em diante ainda é o mesmo ou agrega novas demandas?
    Olhando para o presente e para o futuro, temos demandas novas para a escola. Dentre tantas, destaco algumas:
    • Humanizar é preciso. Significa aprender com ênfase em conteúdos que promovam a inclusão, a corresponsabilidade pelos direitos humanos e a justiça social. A crise de civilidade merece uma atenção de todos para que superemos situações anacrônicas que produzem caos, insegurança, fome e morte;
    • A sustentabilidade do planeta Terra será a condição de nossa sobrevivência. É preciso um agir com uma agenda séria e de comprometimento por alternativas necessárias e urgentes;
    •  Entender que o mundo tecnológico e da informação não produz, por si, o conhecimento;
    • Em pleno século 21, ainda vivemos a discriminação, o preconceito, a miséria, a fome. Precisamos de uma mudança real, e menos oportunismos restritos. Eis uma tarefa imprescindível para todos nós;
    • Que um novo paradigma se construa com mais cooperação e menos competição. Educar humanos, em toda a sua diversidade, por humanos. 
  • O senhor sempre salienta a importância da organização e da união em torno da escola. É possível resgatar esse espírito?
    O legado do passado, superada a fase inicial do Brasil escravocrata, a migração dos povos para o nosso país trouxe experiências diversas no campo da educação. Tenho trazido ao presente o compromisso vivido em muitas regiões de nosso Brasil. Em especial, a nossa região; afinal, o Colégio Mauá é sujeito vivo desta realidade há 152 anos. E o que aconteceu? A escola nasceu e cresceu por iniciativa de sua comunidade. A comunidade detinha a vontade, a coragem, o desafio e a determinação em oportunizar aos seus filhos uma educação sólida e de princípios.
    Quando há esse envolvimento, ou seja, quando a escola é da comunidade, tanto pública quanto privada, não há como fracassar. Acontece um compromisso, uma responsabilidade que se assume em parceria de fazer acontecer.
  • E os pais, o que se espera deles para a formação dos filhos?
    O papel dos pais e da escola são distintos, mas não excludentes. Enquanto os pais, que vivem uma realidade imbricada por vínculos naturais, assumem desde o nascimento comportamentos fundamentais de amor, de segurança, de proteção, de princípios familiares, o papel da escola parte deste contexto numa ação de acolhimento e de ampliação do universo social. A escola abraça o devir, verbo intransitivo, o vir a ser, tornar-se, transformar-se. Muda a relação, agora, voltada para uma realização pessoal, social e espiritual que ultrapassa o ambiente familiar para um horizonte maior. Numa analogia, poderia dizer que o sujeito na família poderia representar um rio e na escola, ele se prepara para o mar.
  • Qual o perfil ideal de um professor?
    O perfil do ideal sempre é uma expectativa que não se esgota numa definição circunstancial. A busca pelo ideal faz movimento, faz o caminho acontecer. O professor deve ser um eterno aprendiz e, por isso mesmo, uma autoridade nos processos de educação, de formação. Ele dialoga, desenvolve a dialética e promove o desenvolvimento do estudante numa amplitude das relações. O professor acolhe, estimula e cria ambientes de aprendizagens. O professor professa vida, sonhos e esperança. Ele vê a realidade como fonte de pesquisa, de análise e de proposições de soluções. A ação do professor fertiliza as possibilidades de cada sujeito em sua caminhada pessoal e social. Uma dimensão de responsabilidade ímpar. A sociedade, em qualquer lugar, depende do professor. Não existe nada mais lindo do que o encontro de um aluno com desejo de aprender e um professor com vontade e paixão por ensinar.
    O professor é um mediador comprometido com a realização humana em todas as suas possibilidades, potencialidades. Compreende e assume a proposição positiva do acolhimento de aprendizagens em tempos/ritmos e espaços diversos. Tem consciência do seu saber fazer e o faz com visão de humanização, civilização, cidadania, em prol da sociedade que se quer mais integrada, acolhida e atendida em seus fundamentos básicos.
    O professor precisa ser criativo, ou seja, disposto a quebrar padrões, e ter empatia. Ir muito além da empatia cognitiva: eu entendo o outro, mas não me coloco no lugar do outro. Avançar em empatia emocional: eu entendo o outro e me coloco no lugar do outro.
    O professor encontra a sua realização maior no desenvolvimento do estudante. A sua maior satisfação é o retorno de reconhecimento daqueles que cresceram com ele.
  • Que papel cabe à educação em uma sociedade como a brasileira?
    Cabe à educação a construção dos pilares basilares na sociedade. A escola é indispensável na construção de uma sociedade melhor, mais justa e humana. Se não acreditasse nesta possibilidade do papel da educação, não teria forças para agir com entusiasmo, realismo e desprendimento integral nesta causa. A questão econômica aqui no Brasil e em qualquer país é uma questão de prioridade. Quando não há vontade e responsabilidade política para a educação, o exercício fundamental de cidadania não encontra realização. “A maior força de uma cidade é ter muitos cidadãos instruídos”, no dizer de Lutero.
  • Menciona-se muito a adoção de tecnologias e os avanços oferecidos pela internet. Só isso basta para uma educação de qualidade?
    O peso maior na qualidade da educação se encontra, sem dúvida, na relação intencional do professor mediador nos processos de aprendizagem com o estudante. A educação é uma relação humana por excelência. É no encontro das pessoas que ocorre o aprender. Sou na dimensão do outro e, por isso mesmo, esta é a base para o processo de qualidade em educação. A tecnologia é suporte importante e necessária numa sociedade que caminha a passos largos na criação de inovações sustentáveis e eficazes, tendo em vista os complexos desafios que vivemos no mundo. Na educação, temos incorporada a tecnologia que possibilita pontes e avanços nos processos de aprendizagem. Não poderia ser diferente, pois a educação promove o próprio crescimento das tecnologias. O questionamento que precisamos ter presente é a forma quanto ao uso das tecnologias. Consumir inovações sem o exercício crítico leva ao vazio das relações em sociedade, leva ao isolamento do indivíduo, corrói as relações, inclusive no ambiente familiar.
  • E os estudantes, de que forma podem ser sensibilizados para a importância de boa formação? As novas gerações estão receptivas?
    O aprender requer esforço, disciplina e muito trabalho. Requer relação humana de compromisso com a busca, com a pesquisa. Sensibilizar a favor de uma boa formação envolve a família, o professor e o estudante protagonista. Ou seja, o estudante não está só no caminho, por mais incerto ou inseguro que lhe pareça em algumas situações. Então, a sensibilização ocorre na soma dos cuidados que se assume em parceria: família, escola e a comunidade.
    A família e a escola são parceiras para  a busca permanente do propósito da promoção e da realização humana. E, aliadas, vivem uma relação que se traduz em comprometimento com o projeto pedagógico de cada instituição.
    As novas gerações surpreendem com o seu questionamento de reflexão da realidade. Estão atentos e querem um mundo sustentável, por exemplo. Não raro, ensinam ética aos pais, como escreveu Yves de La Taille: “Ética para Meus Pais”, e “É Proibido Calar! Precisamos falar de Ética e Cidadania com nossos filhos”, de Milton Jung, e “As coisas que você só vê quando desacelera – Como manter a calma em um mundo frenético”, de Lya Luft.
  • O senhor cita sempre a formação humana ampla. O que ela envolve?
    A dimensão de formação humana ampla se dá na compreensão de desenvolvimento das potencialidades de cada ser humano, imagem e semelhança de Deus, o Criador. Em sala de aula, ela se concretiza numa relação mútua de respeito, de diálogo, de questionamentos, de dúvidas e no acolhimento de um mundo plural, diverso. O pensar diferente faz crescer. Acontece na premissa trazida por Paulo Freire: não há saber mais ou saber menos, há saberes diferentes. Assim, a sala de aula é um espaço aberto, inclusivo e desafiador para o aprendizado para a vida. A escola é um lugar onde se constrói a humanidade.
  • Qual seria um sonho do senhor como educador e diretor?
    Precisamos, com urgência, melhorar o nosso desempenho de aprendizagem dos alunos. Precisamos investir na formação continuada dos professores. Precisamos valorizar a escola como o lugar de construção da vida em comum. Vivemos numa sociedade da desconexão, que produz desequilíbrios de toda ordem. Reconectar a pessoa, a comunidade e a sociedade para o encontro consigo e com os demais num sentido de pertença e compromisso pela qualidade de vida, em todo o universo do ser, fazer, compreender e conviver. Uma busca pelo equilíbrio capaz de gerar justiça social, paz entre as pessoas.

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