Duas de nossas tias eram solteiras e, infelizmente, analfabetas. Vinham de um tempo em que ler e escrever era desnecessário, valia a obediência cega e contavam os braços para trabalhar. Além do mais, não sabiam falar português, outro entrave para tornar seu mundo ainda menor. A felicidade delas consistia no nascimento de um bezerro, no cultivo de algumas flores em seu modesto jardim, no trabalho da roça, que produzia alguns frutos e, acima de tudo, proporcionar pequenas alegrias aos sobrinhos que, às pencas, viviam ao seu redor.
Não lembro de nenhum ralho conosco. Só quando nos aproximávamos do raso arroio que ali fluía eternamente, vinha a advertência: cuidado para não cair na água, vocês vão se afogar! Nem um sapo afundaria ali. De vez em quando, uma cobra-d’água passava fugitiva, o que também despertava o pânico delas: cuidado com a cobra! Cobras, desde o paraíso de Adão e Eva, sempre sugerem perigo, poucas pessoas não as abominam. Por instinto, as tias cuidavam de nós como se fôssemos seus filhos.
As duas trabalhavam na roça. Plantavam milho, mandioca, cana de açúcar, batata doce, banana, esses produtos comuns. No mais ardente sol de verão, iam de roupa comprida e se abrigavam sob imensos chapéus de palha. No seu tempo, que também era o nosso, a expressão filtro solar não existia. Seu conhecimento empírico, porém, lhes dizia que os implacáveis raios solares poderiam provocar doenças irreversíveis. Suspeitando disso, se protegiam e tiveram longa vida por recompensa.
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Seu pequeno mundo lhes era ou parecia suficiente. As poucas amigas, o prazer da nossa convivência, um raro e eventual refrigerante, uma cuca que nossa mãe ajudava a fazer, a ida à igreja para certamente rezar do seu jeito, esse jeito humilde que tanto agrada a Deus, tudo isso preenchia sua vida. Raras vezes o extraordinário as surpreendia, como aconteceu com a chegada da luz elétrica e o inesquecível momento da entrada de uma geladeira em sua casa. Agora, segundo tia Olívia, poderiam preservar melhor o sal e o vinagre.
Certa feita, tia Hilda anunciou que iria à cidade, o que significava momento ímpar em sua história. Disse que iria com seu chapéu de palha e suas humildes vestes do dia a dia. Advertimos que desse jeito passaria vergonha desfilando pelas ruas de Lajeado. Sabiamente ela retrucou: E daí? Ninguém sabe quem eu sou! Nunca essa frase foi por nós esquecida, mais como anedota do que por sua certeira síntese de uma vida.
Por trás dessa sentença, parece se manifestar um reconhecimento de sua pequenez, de sua noção de ser apenas uma partícula de poeira a flutuar na humanidade. Não me importa a opinião dos outros, até porque não me atinge, eles não sabem quem eu sou e eu me basto a mim mesma, deve ter deduzido. Até porque todos esses outros também eram desconhecidos, portanto ignorados por ela. Como sentenciou Mário Quintana, “eles passarão, eu passarinho”.
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Aí fico pensando em quantas vezes, com receio da opinião dos outros, nos diminuímos, nos retraímos, nos recolhemos, deixamos de ser autênticos. Por outro lado, quantas vezes nos apresentamos de forma artificial nem mesmo nós acreditando na figura que tentamos aparentar. Até para as pessoas humildes, a vida pode ser um pequeno palco de felicidades.
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