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MEMÓRIA

No cruzamento entre memória e ficção

Cecilia e Antonio, os bisavós de Rosane Tremea, imigrantes italianos que se fixaram na Colônia Dona Isabel, hoje Bento Gonçalves, na única foto tirada por eles no Brasil

Na próxima terça-feira, dia 20, completam-se exatos 150 anos desde que, em 1875, as primeiras famílias de imigrantes italianos se fixaram no Rio Grande do Sul, no então chamado Campos dos Bugres, atual Caxias do Sul. Ao longo dos anos seguintes, e até o final do século 19, estima-se que cerca de 100 mil italianos tenham emigrado para o Sul do Brasil, povoando sucessivas novas áreas. Entre eles estava o casal Antonio e Cecilia Tremea, que deixaram a localidade de Lentiai, na província de Belluno, no Vêneto, para atravessar o Oceano e em 1883 se estabelecer no lote 40 da Colônia Dona Isabel, que resultaria no município de Bento Gonçalves.

Ali, a exemplo do que fizeram milhares de conterrâneos, que deixaram para trás uma realidade complicada na Itália recém-unificada (em 1861) e apostaram em vida nova no Sul da América, abriram espaços na mata para as primeiras lavouras, ergueram a própria casa e constituíram família, tendo 11 filhos. Agora, as circunstâncias da viagem para a nova terra e a odisseia que protagonizaram no Brasil são revivificadas em livro de autoria de uma bisneta.

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A jornalista e escritora Rosane Tremea lança neste sábado, em Porto Alegre, o romance Cecilia, Antonio e eu, no qual parte de fatos reais, datas e documentos relacionados com os bisavós (e a imigração), mas preenchendo pela via da ficção passagens sobre as quais não restou registro. Na “encruzilhada” entre história, memória e ficção (o sobrenome Tremea, como identifica, remete a “cruzamento de caminhos” ou “atalhos”, mesma base de “entremeado”, em português), conforma uma peça literária muito original e de leitura instigante e elucidativa.

Com 181 páginas, agregando fotografias do acervo familiar e documentos sobre os quais a autora se apoiou na pesquisa, o volume é lançado pela editora porto-alegrense Casa de Astérion. A sessão de autógrafos ocorre a partir das 16 horas, no Salão Reale da Sociedade Italiana do Rio Grande do Sul (confira box de Serviço, à direita). No dia 28 de maio haverá lançamento em Santa Cruz do Sul, no Centro de Cultura Jornalista Francisco José Frantz.

O livro de estreia de Rosane, que por mais de três décadas atuou junto à Zero Hora (já são quase quatro décadas no jornalismo), resulta de sua dissertação de mestrado em Escrita Criativa na PUCRS. A primeira parte da obra focaliza seus bisavós (e a comunidade onde viviam) entre 1883, quando saíram da Itália e chegaram à colônia, e 1899, ano da morte de Cecilia. Ela ambienta, por meio da ficção, a partida da Europa, a viagem em si e depois a rotina no lote colonial. Era projeto que se determinou a empreender por solicitação expressa de seu pai, também Antonio, neto do imigrante.

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Como evidencia, foram necessárias quatro décadas até que efetivamente concretizasse um livro sobre os bisavós. Na segunda parte, que classifica como autoficção, descreve o périplo para o levantamento de informações e documentos (no Brasil e na Itália), marcado por muitas casualidades (ou sincronicidades). O romance de Rosane acaba por constituir um retrato instigante de uma família, que ilumina a imigração italiana como um todo por ocasião das comemorações do sesquicentenário da presença dessa etnia no Estado.

“Anos se passaram do episódio da carta e eu mal sabia o que queria da vida. Por isso, só contei aos meus pais a profissão escolhida ao receber a notícia da aprovação em Jornalismo. Minha mãe gostou. Meu pai não ficou contrariado. Pouco e mal alfabetizado, me perguntou se jornalistas escreviam livros. Respondi que sim, vislumbrando um futuro. Ele, então, não pediu, sentenciou: – Escreve a história dos meus avós.
Justo quando sairia de casa, quando não mais poderia ouvir os causos que o pai contava, ele vinha com essa ideia.”

A riqueza do talian

Com seu romance Cecilia, Antonio e eu, a ser lançado neste sábado em Porto Alegre, a jornalista Rosane Tremea marca, através de um esforço de memória familiar e comunitária, o contexto do sesquicentenário de imigração italiana no Rio Grande do Sul. Da sua atuação profissional na comunicação traz o pleno domínio da pesquisa e da investigação na elaboração e na edição de conteúdos. Alia a essa trajetória o conhecimento teórico e prático de ficcionista, ou da escrita criativa.

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“Eu gosto de memória, de contar a vida das pessoas, de autoficção, desse gênero que ainda não tem uma denominação fechada, que alguns chamam de ‘escrita de si’”, comenta, em entrevista à Gazeta do Sul. Em seu livro, além do empenho em contextualizar o tempo e o espaço no qual os antepassados Tremea se estabeleceram, na Serra Gaúcha, ela dialoga com a geração de seus pais e com os parentes que permaneceram na Itália, de maneira que essas vivências repercutam no presente. As suas viagens em busca das raízes no Vêneto certamente inspirarão muitos outros descendentes de italianos (e, claro, também os de outras etnias), em uma conexão social, histórica e cultural.

Estimulada a elencar aspectos que lhe chamam a atenção nas contribuições dos italianos para o modo de ser e de viver dos gaúchos, Rosane menciona a gastronomia e o legado da língua, que enriqueceram a socioeconomia do Estado. “Tem tanta coisa que não só esses imigrantes legaram, como tantos outros de tantas origens, e dos que já viviam aqui, dos povos originários”, frisa. “Eu aposto mais nessa diversidade e em tudo o que ela gerou. Mas acho muito importante ainda mantermos os dialetos das mais variadas regiões e que, na mescla, produziram um que tem status de idioma: o ‘talian’, reconhecido desde 2014, e ainda muito falado por aqui”, enfatiza.

Na entrevista à direita, Rosane, que é natural de Anta Gorda, no Vale do Taquari, e formou-se em Jornalismo pela PUCRS, reflete sobre a transição dessa área para a literatura, sobre o processo de elaboração de seu romance, o que envolveu diversas viagens suas para a Itália, e sobre o que significa para ela descender de italianos.

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Entrevista

Tens longa vivência no jornalismo. Como está sendo essa transição para a literatura e como as duas áreas se mesclam, em tua experiência?

Respondo usando as palavras de uma escritora a quem admiro muito, a chilena Isabel Allende. No final do ano passado, participei de um evento online com ela e tive oportunidade de lhe fazer uma pergunta, exatamente a que estás me fazendo (Isabel atuou como jornalista antes de migrar para a literatura). Sabe o que ela me disse? Que ajudava na transição se eu fosse uma jornalista ruim, como ela se considerava, já que inventava o tempo todo (risos!).

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Não vou me gabar e dizer que sou uma jornalista excelente, mas essa foi a maior dificuldade para este primeiro livro: eu queria escrever ficção, mas estava o tempo inteiro presa aos fatos, os poucos de que dispunha, e aos preceitos do jornalismo. Meu orientador no Mestrado em Escrita Criativa (concluído na PUCRS em 2024) e um dos professores que estavam na banca da minha defesa, e que me acompanhou no curso, viviam batendo na tecla: te liberta para criar!

Mas, como me disse Isabel Allende, tem coisas que a gente aprende na prática jornalística que são muito úteis na hora de escrever (também) literatura: ter prazo para iniciar e terminar um texto, trabalhar sob pressão, usar técnicas de entrevista e investigação para enriquecer os elementos que compõem o texto. “Isso tudo é valiosíssimo para o trabalho de um escritor”, concluiu a escritora. Concordo totalmente. Ao escrever, tentei viver nos dois mundos, aproveitando o que cada um oferece de melhor.

O livro resulta também de profunda investigação, de pesquisa, não é? Como foi esse processo e há quanto tempo lidavas com o projeto?

Vou dizer uma obviedade e já me desculpar por ela, mas acho que pesquiso – e escrevo – esse livro desde sempre. Meu pai era do tipo que vivia como se tivesse desembarcado de um vapor de imigrantes, embora já fosse da terceira geração, mas, não por falta de interesse, sabia pouco dos antepassados (seu avô, o Antonio do livro, morreu antes de ele nascer, e eu mesma pouco convivi com meu avô, morto quando eu era criança). Sempre tive interesse em saber mais, primeiro com curiosidade infantil e adolescente, depois como estudante de Jornalismo. Além de sempre questionar meu pai, adorava pesquisar no Arquivo Histórico do RS, em Porto Alegre, e falar com gente que estudava o tema.

Na época, não havia a busca pelo processo de dupla cidadania, que só virou lei mais tarde e agora está sendo restringida por decreto na Itália. Depois, fui descobrindo com primos que pesquisavam também, reunindo documentos, ouvindo pessoas. Quando soubemos exatamente o ponto de onde vieram nossos antepassados, fui várias vezes à Itália, uma das últimas durante o mestrado, com uma estada mais longa por lá e com dedicação de pesquisadora. E, claro, fazendo visitas ao lugar onde eles se instalaram na chegada ao Rio Grande do Sul, e onde ainda vivem descendentes.

Nas viagens à Itália em pesquisa na região de origem de teus antepassados, como foi o desafio de unir as duas realidades, a de lá e a de cá?

No meu caso, muito fácil. Logo que os descendentes de imigrantes começaram a percorrer o norte da Itália, vasculhando cartórios e igrejas em busca de documentos, à procura de suas origens, houve quem falasse em interesses em heranças e coisas do gênero. Nossa família na Itália, desde o início, nos recebeu de braços abertos, nunca houve desconfiança. Nós os visitamos muitas vezes e eles a nós. Uma coisa não se perdeu na travessia do Atlântico: nas despedidas, choramos sempre. Tem um detalhe que eu relato no livro e acho curioso: perguntei a um primo italiano por que ele estava gastando tanto tempo, dinheiro e dedicação na reforma de uma casa com mais de 200 anos de história, onde provavelmente nasceu meu bisavô. Ele me disse que, após visitar o Rio Grande do Sul, ficou com vergonha ao ver que aqui se tentava tanto preservar a memória enquanto ele, por lá, a negligenciava. Está há anos nessa missão, sem data para terminar. Acho que isso resume muita coisa.

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O que é ser descendente de italianos para ti?

A cultura italiana sempre foi muito forte na minha casa. Meus pais nunca pensaram em viajar à Itália, para conhecer e muito menos fazer o caminho inverso dos antepassados, mas meu pai ficou muito feliz quando fui pela primeira vez, pouco antes de ele morrer. Entre eles, só se comunicavam no dialeto vêneto, que relutaram em nos ensinar de início, pois achavam que não falaríamos bem o português, como eles não conseguiam falar. Essa barreira foi vencida.

Nós cantávamos em italiano, a comida era italiana em casa, era algo muito forte, numa comunidade pequena. Eu gosto da ideia de manter a cultura, tenho orgulho disso, sem ufanismos, sem achar que alguém é superior ao outro por conta de suas origens. A maioria dos imigrantes veio pelas péssimas condições de vida na segunda metade do século 19 na Itália e aqui não encontrou facilidades. Não é muito diferente da vida dos emigrantes/imigrantes dos nossos tempos.

Serviço

  • O quê: lançamento do livro Cecilia, Antonio e eu, da escritora e jornalista Rosane Tremea, pela editora Casa de Astérion, com sessão de autógrafos
  • Quando: neste sábado, a partir das 16 horas
  • Onde: no Salão Reale da Sociedade Italiana do Rio Grande do Sul, na Rua João Teles, 317, no Bairro Bom Fim, em Porto Alegre
  • Para adquirir: exemplares estarão à venda por R$ 69,00
  • Bate-papo: a atividade prevê bate-papo com o professor Antonio de Ruggiero, da Escola de Humanidades da PUCRS
  • Em Santa Cruz: a obra também contará com lançamento e sessão de autógrafos em Santa Cruz do Sul. Será no dia 28 de maio, no Centro de Cultura Jornalista Francisco José Frantz, no contexto da exposição alusiva ao sesquicentenário da imigração italiana, sediada no local.

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