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Ricardo Düren

O Dia do Gaúcho – e da Prenda

A floração das orquídeas no quintal lá de casa, bastante precoce neste ano, indicou às gurias a aproximação da Semana Farroupilha. Em anos anteriores, esse sempre foi um período mágico para elas, tempo de ir para a aula com os longos vestidos de prenda esvoaçando pelo chão, de enfeitar os cabelos com flores de orquídea e de ensaiar os passos de xotes e chimarritas para as apresentações na escola.

Claro que essa tradição também exigia certos ajustes na rotina. Era preciso acordar bem mais cedo para dar conta da complexidade do traje que compõe a indumentária das prendinhas – é saia de armação, é vestido de renda, sapatilhas, cabelos presos em coques… Mas elas não se importavam em abreviar o sono e o mate de água morna, levado à escola, espantava o cansaço.

É mais um rito que, por força da pandemia, acabou suspenso em 2020. Paciência. Em 2021 a Semana Farroupilha estará de volta, trazendo consigo toda a beleza dessa tradição.

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Um grande amigo meu, carioca da gema, costumava perguntar-me qual a graça que nós, gaúchos, víamos em rememorar, com tanta ênfase e orgulho, as nuances da Revolução Farroupilha. Não entrava-lhe na cabeça o sentido de comemorar, com rondas crioulas, fandangos e desfiles, uma guerra da qual saímos derrotados. Isso que ele nem citava a grande contradição do massacre de Porongos, quando os valentes Lanceiros Negros, já desarmados, foram vítimas de uma chacina que – segundo alguns historiadores – teria sido arquitetada em conluio por comandantes imperiais e farrapos.

Em resposta, eu argumentava-lhe que a Revolução Farroupilha não resumia-se à rendição de Poncho Verde e que nosso orgulho devia-se aos dez anos de resistência de uma minoria, malvestida e mal armada, ante todo poderio militar do Império. E que, nessa década de peleja, houve exemplos épicos de coragem e ousadia dos rebeldes, tais como as batalhas do Seival, vencida por um número menor de farrapos, e a do Barro Vermelho, que colocou Rio Pardo sob a bandeira farroupilha.

E houve também o feito que considero o mais arrojado da revolução: a surreal travessia dos barcos Seival e Farroupilha por terra, sobre carretões puxados por bois, entre o Rio Capivari e a Lagoa Tomás José, em Tramandaí. A epopeia sobre 90 quilômetros de campos, areais e banhados, fez com que o comandante da operação, Giuseppe Garibaldi, fosse chamado de “gringo louco” até por generais aliados.

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Mas não foi apenas sobre histórias de peleias que se formou o orgulho de ser gaúcho. Ele forjou-se também nos rigores naturais desta província sulina, nos esforços impostos pelo campo a colonizadores e imigrantes, nos cruzamentos de causos, mitos e lendas indígenas, portuguesas, africanas, castelhanas, italianas, alemãs…

Sim, há muito de imaginário mítico no orgulho gaúcho, mas nada há de pejorativo no mito, tampouco no imaginário. Já disse o famoso sociólogo francês Michel Maffesoli, professor em Sorbonne, que as paixões nutridas por imaginários míticos congregam sociedades e impulsionam seus integrantes à busca pelo progresso. De certa forma, creio que o mito do gaúcho nos inspira a empreender, a arrojar e, via de regra, a trabalhar duro.

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Para as gurias lá de casa, esta Semana Farroupilha foi dedicada a pesquisas e trabalhos sobre a tradição rio-grandense, encaminhados nas aulas online. À caçula coube fazer um desenho que representasse esse período. Retratou então um gauchinho e uma prendinha, devidamente trajados com bombacha e vestido – a prenda, inclusive, com longos cabelos e uma flor de orquídea sob a orelha, e seu acompanhante com um lenço colorado no pescoço.

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Porém, também inseriu certos modernismos na caracterização. O gaúcho aparece às voltas com o preparo de um saboroso churrasco, não mais com espetos cravados sobre o fogo de chão, mas com emprego de uma churrasqueira portátil, ao estilo barbecue, com as carnes depositadas sobre uma grelha. Já a prendinha está às voltas com a roda de mate, contudo, tendo aposentado a velha chaleira preta, emprega uma vistosa garrafa térmica de alumínio para reabastecer a cuia. Coisas dos tempos de agora…

Entretanto, ao fim da tarefa, a caçula percebeu que havia esquecido de algo imprescindível: o cavalo. Um esquecimento terrível para ela, que almeja, na vida adulta, tornar-se uma “cavalgueira” e desbravar o pampa na sela de um gateado frente aberta. Surgiu então um grave problema, pois os apetrechos usados pelo casal farroupilha – a grande churrasqueira portátil e a mesa sobre a qual ficaram a térmica e a cuia – ocuparam bastante espaço da folha, sem deixar lugar para o cavalo.

A solução encontrada pela traquinas foi desenhar o cavalo em outra folha e, então, recortá-lo, seguindo os generosos contornos – sim, pois o zaino ficou bem gordinho. Deixou-o então solto sobre a primeira folha, a do casal gaúcho, dando ao pingo liberdade para trotar pelo cenário, seja ocupando o lado externo das margens ou mesmo passando na frente dos demais personagens. Mas com cuidado para que não se aproximasse da churrasqueira, para evitar acidentes e graves queimaduras.

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Antes de fotografar o desenho para postá-lo na aula online, Ágatha veio me mostrar. Comentei que ficara muito bonito o seu “desenho do Dia do Gaúcho”, mas ela, então, demonstrou inconformidade.

– Por que Dia do Gaúcho? Pois eu acho que deveria ser o Dia da Prenda.

E passou a discorrer em defesa do importante papel da mulher gaúcha na tradição sulina, até arrematar:

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– Além do mais, a prenda é mais evoluída, “desabrocha” muito antes do que os rapazes. Por isso, usa flores no cabelo.

De fato, a historiografia rio-grandense, tão focada em entreveros e nomes de generais, ainda faz poucas referências à importância da mulher na construção do Estado. À exceção de Anita Garibaldi – que, aliás, era de Laguna –, os registros históricos negligenciam os nomes de mulheres que, em tempos de guerra e paz, pelearam pelo Rio Grande do Sul. Ágatha, pelo visto, almeja reverter essa omissão histórica e, ante sua charla, não me restou contraponto.

– Oigalê, guria esperta por demais…

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