“O mundo não é o que existe, mas o que acontece.”
Mia Couto, em O último voo do flamingo
CREIO NESSA VERDADE, assim como no conceito de Ortega y Gasset de que o homem é ele e suas circunstâncias, e na tese sartreana de que o ser humano ganha existência pelo olhar do outro. Tudo somado, tudo junto e misturado. Assim, o que relato aqui está sujeito a essas e outras variáveis. Só para avisar.
Num dia de março de 1952, fomos levar a tia Bertha Fröllich, madrinha de crisma na minha mãe, à Estação Rodoviária de Iraí, pois ela voltaria para Santa Cruz, depois das férias nas águas termais e de sua sempre querida visita a nós. A família da tia Bertha tinha uma loja de tecidos e eu, quando na cidade, passava tardes lá, ouvindo o rasgar das fazendas e sentindo cheiro delicioso e fresco que ficava no ar. O ônibus atrasou-se em partir, mas acabou saindo e ficamos olhando a tia nos abanar, da janela.
Publicidade
Dali, meus pais deixaram-me no portão do Grupo Escolar, onde eu teria meu primeiro dia de aula. Entrei, faceira com meu caderno novo e com os lápis e a borracha acomodadas numa pasta bem novinha.
LEIA TAMBÉM: Escritora Valesca de Assis inicia coluna quinzenal na Gazeta a partir do próximo fim de semana
Do alto da escada, a diretora e a professora do primeiro ano ajudavam os alunos a encontrarem suas filas. Devo dizer que, em Iraí, todo o mundo se conhecia, menos a alguns habitantes do interior profundo. Eu morava na cidade e meu pai era o pagador dos salários das mestras, por ser o Exator Estadual. Então, elas nos conheciam bem. Lá pelas tantas, percebi que, para uma das filas, a leitura de nomes já estava terminando. Então, a Diretora falou:
Publicidade
– Terminada a Turma A, agora vamos organizar a B.
Eu comecei a morrer: qualquer criança de 5 anos – e eu já tinha 7! – sabia que a turma A era dos “adiantados” e que a B era dos “bu**os”. De jeito nenhum eu iria ficar na B. Uma antiga professora que, no verão, se hospedava no Colégio das Freiras, me ensinara a escrever e a ler várias palavras e até frases pequenas. Por exemplo: vovó (usa sombrinha! ela dizia, para eu gravar) e vovô (usa chapéu!). De Ivo viu a uva, enchi folhas e folhas de caderno, ao ponto de meu estrabismo se atravessar e eu escrever Uva viu a Ivo, Uva viu a Ivo. Falarei sobre meu estrabismo, um dia.
– Diretora – eu pedi, levantando o dedo – eu tenho que ir para a turma A. Já sei escrever!
– Mas chegou atrasada, Maria Valesca.
– Mas foi por causa da viagem da tia Bertha…
– Não sei do que está falando, e vou mandar bilhete para seus pais, se não ficar quieta.
Publicidade
Eu estava arrasada, mas não chorei. Também não sei se fiquei na A ou na B, esqueci. Porém, durante 5 anos recebi livros como prêmios pela minha dedicação aos estudos. Não se magoa uma criança em vão. Algo ela aprende sobre os adultos.
Um dos livros de que mais gostei, tinha um poema sobre a Independência do Brasil, que começava assim: Foi sobre a tarde, quando o sol declina / Hora divina das contemplações / Hora do Gólgota, sublime hora / marcada outrora para as redenções. Quantas vezes declamei esses versos, em meus anos escolares, sem saber o que estava dizendo…
Até o próximo capítulo, beijos.
Publicidade
LEIA MAIS TEXTOS DE VALESCA DE ASSIS
QUER RECEBER NOTÍCIAS DE SANTA CRUZ DO SUL E REGIÃO NO SEU CELULAR? ENTRE NO NOSSO NOVO CANAL DO WHATSAPP CLICANDO AQUI 📲. AINDA NÃO É ASSINANTE GAZETA? CLIQUE AQUI E FAÇA AGORA!
Publicidade