A sociedade brasileira ainda carece de conhecimento aprofundado sobre a realidade e a diversidade do continente africano. Tal lacuna se verifica não apenas entre a população em geral, mas perdura junto a entidades e organismos, públicos e privados. O que é uma lástima, diante dos laços históricos, culturais, econômicos e sociais e das afinidades que aproximam as duas regiões. Nesse cenário, livro lançado em 2009 por um jornalista brasileiro cumpre salutar e oportuna função de esclarecimento.
Foi em março de 2008 que o paulista Fábio Zanini, vinculado à Folha de S. Paulo desde 1995, partiu em viagem cujo projeto era fazer mergulho profundo na África, em périplo de sul a norte pelo continente. No horizonte já estava a Copa do Mundo de 2010, que seria disputada na África do Sul. Desse modo, ele começa a jornada justamente por esse ambiente. O roteiro contemplou quase 30 cidades de 13 países (dos 54 que compõem o continente) e se estendeu até o final de julho. Foram quatro meses e meio de imersão na diversidade social e cultural africana.
LEIA TAMBÉM: A música como ferramenta na concretização de uma identidade cultural e paz
Publicidade
Nas visitas a diferentes nações, cidades e regiões, recolhia conteúdo para alimentar, durante a viagem e conforme as condições de acesso à internet permitiam, um blog, o Pé na África. De volta ao Brasil, seus registros resultaram em livro de título homônimo, editado pela PubliFolha: nas 272 páginas, compartilha impressões e marcas advindas do contato com povos e tradições muito distintos.
Partindo de Johanesburgo, na África do Sul, esta em preparativos para o grande evento do futebol, avança rumo ao norte do continente e se depara ora com países mais abertos, democráticos, ora com nações fechadas e marcadas por governos ditatoriais. Foi o que encontrou já na segunda parada, o Zimbábue, onde atuou na cobertura de eleição presidencial que, uma vez mais, manteria Robert Mugabe no poder (em processo visivelmente fraudado).
LEIA TAMBÉM: Escritor cearense lança livro sobre Belchior neste sábado em Santa Cruz
Publicidade
Os destinos seguintes foram Zâmbia, Gana, Tanzânia, Ruanda, Congo, Uganda, Quênia, Etiópia, Somália, Djibuti e Egito. Sobre essa rica experiência pessoal e profissional, mesmo que passados 17 anos desde quando a protagonizou, Zanini conversou com a Gazeta do Sul.
Entrevista com Fábio Zanini – jornalista e escritor
Desde a viagem de 2008, como segue a tua atenção para com a África?
Depois de 2008, fui várias vezes à África. Em 2010 morei lá durante seis meses como correspondente da Folha de S. Paulo, para a cobertura da Copa do Mundo da África do Sul, e fiz algumas viagens também. Desde então, tenho voltado de forma esporádica, por exemplo em 2013, quando o [ex-presidente sul-africano Nelson]] Mandela morreu; e em 2014, em pesquisa para livro… Voltei no ano passado para a eleição sul-africana, e também tenho feito matérias, reportagens na Folha, sobre o continente. Virei um pouco um especialista, referência na Folha para temas sobre a África. Por vezes faço reportagens ou ajudo colegas, dou dicas, forneço contatos. Não consigo, atualmente, por minhas funções como editor da seção “Painel”, dar a mesma atenção à África, mas continuo bastante conectado, lendo notícias africanas diariamente, e interessado no continente.
Publicidade
Qual foi o principal motivador de teu interesse no continente africano?
É uma história interessante. Sempre me interessei muito por história, geografia, política internacional, geopolítica, desde minha adolescência. Na questão da África, o gatilho, digamos assim, foi quando fiz mestrado em Londres, em 2003 e 2004, na Universidade de Londres, numa escola chamada Soas, sigla de School of Oriental and African Studies, ou Escola de Estudos Orientais e Africanos.
Ali cursei o mestrado de Relações Internacionais; meio por acaso caí nessa escola e nesse curso, direcionado ao terceiro mundo, a África, Ásia… A Inglaterra tem tradição de história muito conectada à África, pelo colonialismo, e comecei a ler muito sobre ela, comecei a estudar muito. Sempre gostei muito de viajar também, de fazer turismo, e daí decidi me concentrar mais nesse continente.
LEIA TAMBÉM: Luisa Pretzel mostra o poder da mulher pelas lentes e olhar
Publicidade
Segues realizando cobertura da realidade africana na atualidade?
Como mencionei, sigo acompanhando bastante notícias sobre a África. O entendimento da África na imprensa brasileira ainda é muito precário. Não é prioridade para nenhum jornal, para as pessoas, e isso apesar de haver laços geográficos, culturais, históricos muito fortes do Brasil com a África. Claro que, pelo fato de ela ainda ser continente periférico em termos econômicos, acaba ficando em segundo, até em terceiro plano comparado a EUA, América Latina, Europa, China. A África sempre está no fim da fila, talvez fique à frente apenas da Oceania nos interesses brasileiros. Ainda é interesse pequeno, e não sei se melhorou muito em relação ao período em que fui para lá. O Brasil tem alguns investimentos lá, tem laços de comércio grandes, mas que não chegam a ser tão significativos, não há uma explosão de participação do Brasil lá. Ainda acho que nosso interesse pela África está bem abaixo do que poderia ser.
Pensas em, em algum momento, voltar a fazer esse mesmo roteiro?
Publicidade
Já pensei nisso. Fui em 2008, e quando fez dez anos, em 2018, pensei “pô, podia fazer uma viagem dez anos depois”. Mas agora tenho dois filhos, estou mais velho, tenho obrigações aqui na Folha, tenho uma coluna de política. Quem sabe quando fizer 20 ou 30 anos eu reveja esses países, ao menos alguns deles. Tenho muita vontade de voltar para Ruanda, Zimbábue, Uganda, Congo, Djibuti.
Tenho vontade sim. Vamos ver se vai dar certo.
O continente africano historicamente tem atraído atenção de jornalistas, viajantes. Há os relatos de Paul Theroux, por exemplo. O que o contato direto com a população dos 13 países que visitaste em 2008 mais ensinou?
Juntando todos os países a que já fui na África, são 25, o que dá mais ou menos a metade dos países africanos existentes. E Theroux é mesmo referência em livros sobre viagens ao continente africano. Do contato direto, vi que a população não conhece muito sobre o Brasil, mas tem afeto em relação a brasileiros, pela questão cultural, do futebol, da música. E percebi uma população muito simpática, calorosa em relação ao estrangeiro. Aprendi na África do Sul que é muita falta de educação você não dizer “bom dia, como vai, tudo bem?”
Como brasileiro, tinha às vezes o hábito de, andando na rua, perguntar para uma pessoa onde ficava o ponto de ônibus, onde ficava um restaurante, já direto, sem o ritual de “oi, como vai, tudo bem?, como vai você?”. Eles são muito educados, muito corteses; claro, isso de maneira geral, pois sempre há exceções. A imagem do africano como uma pessoa selvagem, rústica, agressiva, esse estereótipo, isso está completamente fora da realidade.
Quando olhas para trás, para essa longa viagem, que cenas ou momentos são os primeiros a sempre reaparecer em tua memória, como inesquecíveis?
Acho que são duas coisas. Primeiro, as pessoas, o sorriso das pessoas, a simpatia, o calor humano, o fato de elas tratarem bem uma pessoa que claramente era um forasteiro naquele momento, naquela situação. Ali é um continente negro, e eu era um branco, então me destacava na multidão. E engraçado que em várias regiões da África eles têm termos para definir os brancos. Na região leste, Ruanda, Quênia, Congo, Tanzânia, eu era “muzungo”, uma palavra na língua suaíli que quer dizer branco, estrangeiro. Andava por lá e as crianças gritavam “muzungu, muzungu”; os adultos também me chamavam assim. Já no oeste, em Senegal, Serra Leoa, Gâmbia, é “toubab”. Ali eu era toubab, pra cá e pra lá. Sempre de um jeito carinhoso. Outra coisa que me chamou a atenção são as belezas naturais, a preservação das florestas, as cachoeiras, as cataratas do Vitória, na divisa de Zimbábue com a Zâmbia, a floresta em Ruanda em que fui visitar os gorilas, ou a Etiópia. Isso me chamou muito a atenção.
LEIA TAMBÉM: Caderno Elas: delegada Ana Pippi defende os direitos dos animais e dos menores
Entendes que o continente africano está melhor, ou bem melhor hoje, em relação a como se encontrava em 2008?
Acho que em algumas situações sim, o continente melhorou economicamente. Hoje você tem em algumas cidades e países uma classe média mais forte. A classe média sempre foi o gargalho maior, o problema da África. Porque você tem uma elite, uma casta dominante, política e econômica, uma bolha, e tem uma massa de pobres, com pouca classe média. E nenhum país se desenvolve sem ter classe média: ela traz direitos, serviços, desenvolvimento, emprego, e isso está melhorando. Os países têm criado uma classe média maior, há melhorias na infraestrutura, na internet… Quando fui para lá em 2008, a internet era muito ruim. Eu tinha um blog e era difícil, sofrido, publicar posts, tinha que fazer uma maratona atrás de lan houses; wi-fi era praticamente inexistente naquela época. Isso melhorou muito. A estrutura de comunicação também, estradas, mobilidade; hoje tem Uber em vários países, é mais fácil se deslocar. Isso melhorou. O que não melhorou tanto acho que é a estrutura democrática mesmo. Alguns países têm governos ainda muito autoritários, fechados, arcaicos. Em alguns aspectos melhorou, em outros nem tanto.
Além da viagem específica narrada em “Pé na África”, tens contato regular com outras regiões do continente, não é? O que a África pode ou deve ensinar ao mundo?
Sim, tenho ido, e continuo em contato. Fui esporadicamente, e faço esforço para ir. Gostaria muito de levar meus filhos para a África do Sul talvez, fazer algum safári. Estive em outras regiões, na Namíbia, em São Tomé e Príncipe. No Oeste, estive em Guiné- Bissau, Serra Leoa, Gâmbia; e no norte, na Tunísia, Egito, Marrocos. Conheço mais de 20 países. O que a África deve ensinar ao mundo é isso: um povo caloroso, cujas relações humanas acho que se perderam em outras regiões do planeta.
Tens um livro (Euforia e fracasso) sobre o avanço do Brasil na África nas gestões do governo Lula entre 2003 e 2010. O que ficou daquele movimento?
Como diz o título do livro, é um momento de euforia do primeiro governo Lula, quando o Brasil se abre para o mundo em termos de comércio, busca novos mercados, investimentos, obras de infraestrutura. Grandes empresas brasileiras vão para a África, como a Vale do Rio Doce, a empresa de ônibus Marcopolo… O Brasil também criou projetos na área de agricultura, de saúde, nesse momento. E aí há um refluxo, quando o Brasil se retrai, para de crescer, entra em recessão, há o escândalo da Lava-Jato. As empreiteiras brasileiras são atingidas, e uma perna importante desse escândalo são os contratos com países como Angola.
Hoje, estamos no meio-termo: algumas empresas voltaram para a África, continuam tendo interesse. Até porque a África é um mercado importante, emergente, e há outras potências indo para lá, como Índia e China. O Brasil ainda tem interesse pela África, mas acho que não vai ser com o exagero daquele momento. Algumas correções terão de ser feitas para uma relação mais saudável.
“O povo da África é muito caloroso”
Formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), o jornalista Fábio Zanini é mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Londres, com atenção direcionada para a África e o Oriente Médio. Isso foi determinante para tornar o continente africano uma de suas áreas de interesse constante.
Zanini é ligado às editorias de Política e de Mundo na Folha de S. Paulo, na qual assina a referencial coluna “Painel”, com bastidores da política. Além de ter compartilhado com leitores a experiência de sua imersão na realidade de diversas nações, em viagem realizada em 2008 (no livro Pé na África), voltou a se ocupar do continente negro em outra obra.
LEIA TAMBÉM: Fase regional do Enart vai reunir mais de 130 competidores em Candelária
Euforia e fracasso do Brasil grande: política externa e multinacionais brasileiras na Era Lula foi lançado em 2017 pela editora Contexto, em 221 páginas. Nele, Zanini investiga o movimento de internacionalização de projetos e de investimentos ensaiado no primeiro governo do presidente Lula, entre 2003 e 2006, esforço que mirou em especial regiões africanas.
Em paralelo à abertura de 50 novas embaixadas brasileiras e da efetivação de projetos de infraestrutura que envolveram empreiteiras e construtoras nacionais em vários países, houve o estabelecimento de parcerias no setor primário, em ações da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). No entanto, denúncias de escândalos de influência e de corrupção viriam a colocar por terra tais esforços de viés imperialista.