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elenor schneider

O sino da madrugada

Nasci numa minúscula aldeia no interior de Cruzeiro do Sul. Em quase todos os sentidos, a vida era devagar e muitas vezes observada da janela. Esporádicos transeuntes passavam a pé, eventualmente em carroças ou montados em algum projeto de pangaré. A luz elétrica chegou à nossa casa no início da década de 60. Antes, lampiões a querosene ou gás ou ainda precárias baterias se esforçavam para atenuar a escuridão. Não era uma vida triste, ela se bastava a si mesma.

As notícias do mundo chegavam através de um rádio rouco, chiante, cujas vozes se encolhiam na mesma proporção da bateria minguando. O mundo, aqui, significava apenas as pequenas comunidades da redondeza, não esse emaranhado de vozes, culturas e conflitos que vieram se agregar à nossa pequena história bem mais tarde. O que imperava eram miúdas informações de um cotidiano possível: o nascimento de uma criança, a morte de um conhecido, a compra ou venda de uma junta de bois, uma seca impertinente, a indicação de um chá para curar os doentes que não conheceriam médico.

Quem sabia escrever e ler, enviava e recebia cartas, muitas delas de familiares que nunca mais seriam vistos e logo esquecidos para sempre. Algumas tramavam amores, cheios de saudades, distâncias e esperanças. Um beijo discreto, ao final das notícias, demorava semanas para chegar ao destino. Nunca se saberá se algumas delas sequer alcançaram o destinatário, perdidas entre as bugigangas de uma bodega ou fugitivas das frestas do ônibus chacoalhante que as transportava.

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Eram auspiciosas as novidades que algum visitante ou simples passeante semeava na aldeia. Contribuíam para as pessoas humildes entenderem que o universo era maior que o seu insignificante território. Isso tranquilizava, mas também engendrava inquietações. Raras pessoas assinavam algum jornal ou perdido anuário. O telefone, tocado a manivela, reinava único na venda do povoado. O comerciante, qual padre no confessionário ou psiquiatra no consultório, recebia os mais inusitados recados que transmitia às pessoas endereçadas.

As noites, com seus grilos tritrilando, suas corujas piando, seus cães latindo, seus fantasmas perambulando, seus sonhos projetando futuros, eram abençoadas por encantador luar, por incontáveis estrelas rutilantes, piscantes, radiosas, tudo transpirando serenidade e paz. Nenhuma luz artificial ofuscava o brilho descendo do firmamento. As noites eram tão silenciosas que era possível ouvir o sereno descendo manso sobre a paisagem, como nos ensinou Érico Veríssimo.

Tudo exalava tranquilidade até que, no meio da noite, o sino da pequena igreja começasse a tanger, cheio de angústia. E, quando isso acontecia, o sinal estava dado: alguma casa ou pequena empresa ardia em chamas e pedia solidariedade. Mesmo se sabendo impotentes, as pessoas acorriam, na esperança de debelar as chamas implacáveis. Os bombeiros ficavam distantes, a comunicação era praticamente impossível.

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Ao menos dois desses episódios ficaram eternizados na minha memória. O sino, no meio da noite, se transformava em portador de edição extraordinária e implorava ajuda. Hoje, os meios de comunicação se multiplicam, oferecem incontáveis formas de encontrar o ser humano, onde quer que esteja. No entanto, os variados meios parecem que não mais conseguem despertar a solidariedade e a compaixão que o pequeno sino da minha aldeia acordava no meio da noite.

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