Na manhã de quinta-feira, 12, os atores celebrados no 8º Festival Santa Cruz de Cinema, Araci Esteves e Allan Souza Lima, reuniram-se para uma coletiva de imprensa no auditório central da Universidade de Santa Cruz do Sul. Horas depois, à noite, o ator pernambucano voltaria ao mesmo palco para receber o Prêmio Tuio Becker e a atriz gaúcha teria sua carreira homenageada.
Entretanto, o que era para ser uma entrevista com repórteres tornou-se uma conversa emocionante, inspiradora e, acima de tudo, muito humana. Para além das respostas burocráticas e automáticas tradicionais em momentos como esse, expuseram-se e entregaram as felicidades e angústias de quem ganha a vida interpretando personagens no cinema, no teatro e na televisão.
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Araci e Allan também evidenciaram o papel do festival para além da exibição dos curtas-metragens. Sobretudo a importância de trazer para o evento estudantes, demonstrando a força do cinema na transformação e no desenvolvimento do público.
Araci Esteves: “espero voltar para assistir a esse festival várias vezes”
A Experiência com o festival
“Eu sabia que o festival existia. O que não sabia era que tinha um curso de cinema na cidade. E foi uma surpresa extremamente agradável, porque uma cidade ter um curso de cinema é um privilégio que poucos lugares no Brasil têm. A experiência está sendo uma coisa muito gratificante, porque não esperava que o festival tivesse a repercussão que tem. Porque me parece que ele está muito conectado com a cidade. Isso é uma coisa maravilhosa. E espero que ele continue sempre assim, e cada vez mais conectado com as pessoas que vivem aqui. Então, é muito bom estar aqui.”
O papel do cinema na educação
“Acho que os responsáveis pela educação no País nunca pensaram que o cinema é uma das mais ricas formas de expressão que existe. E não usam, não têm nem noção do que podem fazer através do cinema. Levar a criança até o cinema vai formar, realmente, pessoas que sabem o valor que esse meio de comunicação tem. Porque a criança aprende no meio do jogo, do brinquedo, do que lhe dá prazer. Então, realmente, você vê uma fantasia no cinema que tenha um conteúdo e mostra para essa criança como é, o que ela está vendo, isso vai formar um adulto que criará os seus filhos e todos os seus próximos sabendo muito mais o que é o cinema. Mas isso precisa de um projeto que não depende de nós, atores; depende de que a gente se empenhe junto. Depende muito do que vem de cima, de quem realmente decide o que vai fazer com a educação.”
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Muita importância no interior
“Acho que o cinema que se faz no interior é extremamente lindo, e muito competente, inclusive, na forma de ser feito. Porque você vai no festival e vê muitas obras feitas no interior que são obras-primas, maravilhosas. É muito importante que o interior tenha acesso a tanta tecnologia, a tantos grandes centros. Uma pessoa pega uma câmera ou mesmo um celular e tem a curiosidade de mostrar como vive a sua comunidade. Qual olhar que ela tem sobre a vida, o que se passa ali, o que acontece. Porque o importante não é o cinema ser feito só nos grandes centros, e mostrar o dia a dia, os problemas e as necessidades do que acontece apenas ali.”
Inspiração para novas gerações
“Olha, eu, na verdade, não me sinto inspiração. Para mim, ser atriz é uma necessidade minha. Tive a primeira experiência de palco numa escolinha do interior de Osório, onde nasci. Eu tinha uns 6 ou 7 anos, mas já sabia ler. A escola fez uma festinha de uma hora de arte. E me deram um monólogo. Quando eu decorei aquilo, e subi naquele palquinho, me senti a criança mais bonita do mundo. E foi um prazer tão grande, sabe? Que esse prazer é o mesmo que sinto hoje, quando faço alguma coisa. Então, é realmente inspiração. Acho que depende de quem vê. Depende de quem assiste. Eu não faço cinema, teatro, televisão, para inspirar. Faço: e espero que as pessoas sejam tocadas por aquilo que faço. Espero tocar as pessoas. Tocar os sentimentos delas, as sensações. Mas, de uma forma ou de outra, a gente lá, sentadinho, sempre se inspira no que vê…”
O que Tuio Becker diria
“O Tuio era uma pessoa bastante preservada. É claro que ele ia gostar muito, mas do jeito dele. Entende? Acho que talvez ele não fosse muito efusivo, nem nada, mas ia ficar guardado no coração dele com muito, mas muito cuidado, e com muito amor.”
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A condição de homenageada
“Para mim, receber esse convite, ser homenageada, é um pouco assustador. Porque sinto que preciso fazer uma panorâmica do que já fiz na vida, para ver se tenho realmente de ser homenageada, se posso ser. Receber uma homenagem num festival, receber uma homenagem de uma cidade, de uma coletividade, é uma coisa muito importante. É também tomada de consciência, sabe? Para saber se realmente tenho condições de estar aqui hoje. Acho que não. Não é falso ou honesto, é realmente fazer um apanhado de tudo o que já fiz. Mas é também um prazer muito grande. Essa cidade me recebeu tão bem; daqui a pouco venho morar aqui! É sério. Estar aqui, recebendo esse carinho, vamos combinar, é muito bom. Espero não deixar nenhuma imagem negativa. E, em especial, espero voltar a assistir a este festival muito mais vezes.”
Allan Souza Lima: “o artista surge do dilaceramento da sua vida”
A responsabilidade do ator
“Quando você cria algo, e naturalmente essa criação te modifica, te transforma, te radica por inteiro, acho que naturalmente você vai modificar quem está vendo. A partir desse princípio, penso que temos uma grande responsabilidade, que está sendo perdida. Acho meio triste isso. Vejo que muitos se dizem, mas acho que só ocupam a funcionalidade da profissão. Só pelo nome. E a gente precisa entender que por trás disso existe uma grande responsabilidade emocional e visual. Porque hoje nós somos movidos pelas redes, e a gente tem que ter cuidado com quem nos assiste. Sempre tenho muito cuidado com o que eu posto e do que falo. São pequenos detalhes, no que acho que a gente tem grande responsabilidade. A arte é assim. A cultura tem uma força de transformação. Ela é genial porque sempre está à frente da sua temporalidade. Ela consegue nos puxar junto, os artistas, e, consequentemente, o público.”
A presença de estudantes
“Acho muito importante ter um curso de cinema aqui [em Santa Cruz do Sul] para estimular a cultura. Acho que, acima de tudo, é educação. Vi uma foto que me impactou, que foi essa sala lotada, pois pensei que tinha quase 700 pessoas acompanhando o festival. E é muito legal ver quase 700 pessoas aqui [no auditório central da Unisc]. Vi muitos estudantes por aqui e achei muito legal. Se não houvesse esse festival, provavelmente eles nem saberiam o que é isso. Além de mostrar histórias reais, está dando oportunidade para esses jovens criarem histórias na cabeça deles. Acho bonita uma frase do Manoel de Barros, que diz assim: “a infância é a maior poesia que existe”.
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Sobre o legado que se deixa
“Fico vendo, na nossa classe, atores, atrizes que vão escrever uma biografia aos 35 anos. Biografia de quê? Me perguntam quando vou escrever. Já escrevi, há quatro anos; já escrevi um livro. E só falo que vou lançar a partir dos 50. Tô galgando ainda uma história. Acredito que fiz muitos trabalhos relevantes, Mas tem muito mais para acontecer e para caminhar. Na nossa carreira, com 90 anos, a gente continua trabalhando. Não existe a aposentadoria. Acho que é mais uma indagação ou uma reflexão.”
A dor de ser artista
“O artista vem do dilaceramento da sua vida. O ator se rasga por inteiro. E a gente não tem tempo de costurar e cicatrizar isso. Eu tive uma crise de burnout muito séria agora na segunda temporada [de Cangaço Novo]. Me questionaram muito sobre. Falando exatamente da funcionalidade do artista ator, tem personagem que te arregaça inteiro. Essa é a palavra. Só consegui dar entendimento do que vivi durante os três anos na última semana da segunda temporada. Porque fui caindo e me deparei com um personagem que era um eu desconhecido. E o personagem te modifica. Se vai te modificar, consequentemente, vai modificar quem assiste. Precisei ter essa reflexão, pois alguns diziam que eu estava me destruindo numa coisa que é tão bela. Entendi isso depois. Muitos são contra o processo do ator metódico. Mas aí você está querendo tirar o brilho de um Daniel Day-Lewis, do Christian Bale, e outros. ‘Ah, mas sofreu!’ Sim, sofremos fazendo uma criação. Qualquer criação é dilacerante. Eu caí, pedi ajuda. Achava que era super-homem, sempre falo disso; foi um grande aprendizado para mim, esse personagem, porque sempre carreguei o mundo nas costas. E esse personagem me fez entender que, se você não pedir ajuda, não sei onde poderia estar, sabe? Eu cansei. Deixei de fazer outros trabalhos tão intensos quanto, porque sabia que estava dilacerado. E demora entender que você tem de parar, e cicatrizar um pouco; mas a marca vai estar aí. Essa é a profissão que escolhi. Não sei fazer outra coisa. Provavelmente escolhi ser ator para vomitar as minhas dores.”
Nova temporada de Cangaço Novo
“Então, vocês sabem que o Baldo [Ubaldo Vaqueiro, personagem vivido por Allan na série] está com sede de vingança, né? Então, é isso que vocês esperem. [O retorno] é gratificante demais, assim. Acho que a segunda temporada vem com muito mais força. Porque há um grupo que fortalecemos ali, fazendo a presença da primeira temporada, que foi muito boa. Então, a segunda, acredito que vem com… É muito delicado, porque a segunda temporada sempre é mais complicada. É sempre mais perigosa, porque a expectativa é alta. É difícil, né? Mas, acredito que… Bom, tive burnout, né? Então, acho que superei a minha entrega. Acho que esperamos isso.”
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