Uma das recordações marcantes de minha infância é a de passar noites ao lado da mesa de trabalho de meu pai enquanto ele desenhava e, principalmente, projetava obras civis. Na atividade que ele mantinha paralelamente à de engenheiro mecânico e industriário, foram mais de seiscentas casas e pelo menos seis igrejas concluídas. Embora ele usasse quase sempre o lápis, por vezes eu ouvia a palavra nanquim, que para mim era sinônimo de canetas de tinta negra usadas em desenhos técnicos e artísticos.



Ao desembarcar pela primeira vez em Nanquim, aquela foi minha primeira lembrança. Na China, a tintura preta que leva o nome da cidade já era usada desde o período neolítico, há mais de 5 mil anos. Como a tinta nanquim, o papel (105 a.C.), a pólvora (1000 d.C.), a seda (3000 a.C.), a bússola (1100 d.C.), as cédulas monetárias (850 d.C.), a impressão por tipos móveis (990 d.C.) e tantas outras tecnologias já tinham sido inventadas por lá séculos antes do ocidente.
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Capital da província de Jiangsu, Nanquim tem pouco mais de 10 milhões de habitantes. A cidade fica no delta do lendário Rio Yangtzé, uma das maiores zonas econômicas da China atual. Sua influência na história e na cultura chinesas são vitais, tendo sido capital de seis dinastias desde o século 3 e de um governo republicano no século passado, cujos líderes fugiram para Taiwan. O nome atual, Nanquim, foi cunhado pela dinastia Ming (1368-1421) e quer dizer capital do sul, em oposição a Pequim, a capital do norte.
Entre longos períodos de paz e prosperidade, a cidade não ficou livre de desastres, guerras e invasões. O massacre mais famoso, até por ser recente, entrou para a história como o Estupro de Nanquim. Em dezembro de 1937, os japoneses, que já tinham ocupado a região da Manchúria anos antes, entraram nas muralhas de Nanquim e, em poucas semanas, massacraram mais de 350 mil civis e cometeram um número estimado de 80 mil estupros. Foi o caso mais emblemático da matança e tortura indiscriminada perpetrada pelo Japão às vésperas da Segunda Guerra Mundial.
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A metrópole oferece muitos pontos de interesse cultural e histórico. A bem-preservada Muralha de Nanquim, com 48 km de extensão, foi construída no século 14, quando a cidade era a maior do mundo. Duzentos mil trabalhadores levaram 21 anos para ser concluir a fortificação. A religiosidade de Nanquim está marcada por mais de 400 templos budistas. Nos arredores, um imenso parque aos pés da simbólica Montanha Púrpura guarda o Mausoléu de Sun Yat-sen (1866-1925), fundador e primeiro presidente da República da China. Sun liderou a Revolução de 1911, que encerrou a última dinastia (Qing).
Curiosamente, o líder é reverenciado tanto em Taiwan, onde é chamado de “pai da nação”, como na República Popular da China, onde leva o título de “precursor da revolução.” A educação e a pesquisa de ponta em Nanquim é mais um exemplo da importância das universidades e da ciência na China, nação ciente de que o sucesso econômico precisa estar baseado no conhecimento e na independência tecnológica.
São 68 universidades na cidade, entre elas a histórica Universidade de Nanquim, uma das melhores do planeta. Para quem ainda pensa que a China não dá importância ao meio-ambiente, em 2024 Nanquim ficou com o título de segundo centro de pesquisa mais prolífico do mundo em ciências do meio-ambiente, atrás apenas da também chinesa Pequim. Dos cinco centros mais desenvolvidos do planeta nesta área, quatro ficam na China.
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Um fato, aliás, pode servir de presságio para o futuro da economia mundial: a cada ano, a China coloca no mercado 4,7 milhões de formados em ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM, no acrônimo em inglês). A Índia produz outros 2,6 milhões. Os Estados Unidos formam 560 mil, número que segue em declínio, e, no Brasil, são menos de 200 mil (meros 15% dos universitários).
A cada visita à China, observo que o ocidente está sendo engolido científica e economicamente. No futuro, a explicação ocidental de como isso aconteceu poderá ser semelhante à que deu Ernest Hemingway ao ser questionado sobre como tinha ido à falência: “De duas formas. Gradualmente, e então repentinamente.”
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