
A Sacra di San Michele é um monastério milenar construído em um ponto inóspito, de difícil acesso, com vista de 360 graus para todo o Vale de Susa, no Piemonte. Ali, as ondulações do terreno fazem os Alpes se tornarem um mar de beleza infinita entre céu e terra. Diante dessa imensidão, nos deparamos com a pequena dimensão do ser humano perante a natureza. É impossível estar nesse lugar de beleza inexplicável e não crer em algo maior. E é justamente quando a grandiosidade do cenário nos envolve que surge o primeiro enigma: como a construíram? Como homens subiram mil metros acima do nível do mar com pedras tão gigantes e robustas? A Sacra não está sobre a montanha: ela está fundida a ela, integrada ao próprio granito como parte da sua estrutura de sustentação. As pedras eram extraídas do Monte Pirchiriano, transformando a montanha em canteiro de obras. E, movidos pela fé, acreditavam que quanto mais alto construíssem, mais próximos de Deus estariam.
San Michele é São Miguel, arcanjo guerreiro de Deus que fascina o imaginário coletivo religioso. O culto ao santo se difundiu por todo o território europeu, principalmente durante a Idade Média, quando a população precisava de proteção espiritual em um mundo repleto de doenças, invasões e calamidades. Além da sua relevância espiritual, existe também um arcano por trás dos santuários construídos em sua homenagem. São ao todo sete “Sacras di San Michele”, alinhadas em milhares de quilômetros em uma linha imaginária reta que começa na Irlanda e termina em Israel. Alguns dizem que é mera coincidência; outros, mais crentes, afirmam que representa a espada de São Miguel. Há ainda um caminho de peregrinação que conecta todas as sacras. A Itália abriga uma no Piemonte e outra no sul do país, em Puglia. De modo geral, edifícios sagrados costumam ser construídos ao longo de linhas de energia da Mãe Terra, onde está presente uma intensa força energética utilizada por comunidades, famílias e indivíduos. Todos esses lugares têm um denominador comum: são considerados pontos energéticos, carregados de mistérios.
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A estrutura da Sacra di San Michele segue a geometria sagrada (na mesma filosofia das pirâmides do Egito), permitindo uma melhor conexão terrena com o divino. A pesquisa preliminar para decidir onde construir (posicionamento em relação aos pontos cardinais, movimentos de água subterrânea, linhas sincrônicas e dutos particulares) ainda hoje é reconhecida por radiestesistas e especialistas da área, que buscam os campos de energia sutis presentes na terra, em objetos, pessoas e ambientes. Talvez seja justamente esse enigma em torno da localização, da construção e da estrutura sagrada que tenha inspirado Umberto Eco, grande escritor italiano contemporâneo, a criar o cenário de Il Nome della Rosa (O Nome da Rosa). A trama principal, dentro do gênero suspense, busca identificar o assassino dos monges encontrados misteriosamente mortos em um monastério monumental e isolado no alto da montanha. (Já consegue perceber a semelhança?).
Paralelamente, Eco introduz desvios de enredo que confundem o leitor, misturando o contexto histórico da Inquisição e a associação das mortes ao livro do Apocalipse feita pelo monge mais antigo, Alinardo de Grottaferrata. Embora Eco nunca tenha revelado a localização exata do monastério que inspirou a obra, as pistas nos conduzem à Sacra di San Michele. O Vale de Susa sempre foi passagem estratégica entre Itália e França, palco de tensões transalpinas e lar de diferentes ordens monásticas. O personagem Ubertino da Casale, figura real, viveu no Piemonte e fugiu da perseguição por defender ideias condenadas pelo papado. O norte da Itália foi uma das regiões mais ativas da Inquisição. Monastérios censuravam textos e mantinham bibliotecas sob vigilância. Inclusive, a biblioteca em forma de labirinto faz parte desse grande segredo, e o próprio livro de Eco é um labirinto. Cada pista não nos aproxima da solução, mas nos leva a novos enigmas. Guglielmo da Baskerville, personagem inspirado em Sherlock Holmes, e Adso da Melk, seu Watson, seguem o método lógico e dedutivo (mas falível, pois Eco não deseja um herói perfeito como o super-homem) em um ambiente repleto de dogmas religiosos, onde parece impossível encontrar o culpado. Isso distancia o romance dos suspenses tradicionais, que caminham para uma única resposta final.
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E há ainda um elo silencioso: Eco era piemontês
Visitei a Sacra di San Michele enquanto leio O Nome da Rosa. Foi como atravessar um portal: entrei nos mistérios do livro e me senti parte da própria história. E, ao mesmo tempo, estremeci diante da força da arquitetura. Desde a entrada, a fachada de 41 metros se impõe. Alguns passos adiante, aparece a “Escada dos Mortos”: uma longa escadaria de pedra medieval ladeada por tumbas que, até pouco tempo atrás, guardavam os ossos dos monges. Seguindo, chegamos ao Portal do Zodíaco, formado por fragmentos de mármore. À direita, os signos do zodíaco surgem em relevo, como leões, peixes, caranguejos e águias, enquanto à esquerda sucedem-se as constelações boreais e austrais. Ao sair para a área externa, encontramos grandes colunas e arcos que sustentam o peso colossal da abadia no topo da montanha.
Eles emolduram a paisagem e formam um terraço monumental entre o portal e a igreja superior. É por esse corredor de pedra que avançamos até a grande porta de madeira esculpida, a entrada majestosa da igreja. A igreja é simples e solene, feita de pedra bruta que deixa entrar uma luz calma e antiga. Após atravessar o interior silencioso, caminhamos pelo seu entorno na área externa, seguindo por passagens de pedra que contornam o monastério e se abrem para terraços suspensos, de onde o vale inteiro parece respirar. Fico imaginando como seria ver as mudanças da paisagem em cada uma das quatro estações. Agora é outono, as folhas começam a ganhar tons de laranja em meio ao verde, mas imagino que tudo coberto de neve deva acrescentar um ar de melancolia e beleza que combinaria perfeitamente com o lugar.
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Visitar esse ponto mágico e enigmático do planeta pede mente e coração abertos, para se deixar transformar pelo que não se pode explicar. Exige aceitar que não temos controle de tudo e que o conhecimento humano é ínfimo diante do que existe para além dos olhos. Assim como a mensagem que Umberto Eco deseja trazer em seu romance, mesmo sendo ateu e semiólogo: é impossível alcançarmos a compreensão do todo. Não existe uma verdade absoluta, existe apenas a interpretação.
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