Ser imigrante é viver entre dois mundos: o que deixamos para trás e o que estamos aprendendo a construir. É reaprender a viver nos detalhes mais minuciosos do cotidiano: desde entender os novos preços no supermercado, até descobrir como se locomover por uma cidade desconhecida – entre linhas de metrô, ônibus e trajetos ainda não reconhecidos – sem falar em aprender uma nova língua e se comunicar com uma cultura que possui ritmos, hábitos e modos de se relacionar muito diferentes dos nossos.
Enquanto essa adaptação vai acontecendo, há também o processo burocrático: o tão temido permesso di soggiorno, a permissão de residência, que é lento, cansativo e, por vezes, doloroso. A burocracia italiana, de fato, é uma das mais complicadas. Mas, quando o imigrante finalmente obtém o seu permesso, ele se torna livre para começar a pensar nos seus próprios objetivos e sonhos pessoais.
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A minha linha do tempo aqui foi assim: cheguei como estudante de italiano, enquanto me preparava para passar no vestibular. Consegui o meu primeiro trabalho como social media, secretária e criadora de conteúdo na escola onde estudava. Em outubro, fui aprovada na Universidade de Ciências da Comunicação da Università di Torino. Resumindo, 2025 foi um ano de adaptação cultural, mas também de metas cumpridas com sucesso.
Pelo que tenho conversado com outros estrangeiros, um ano de adaptação foi rápido. Para muitos, esse processo é mais longo, mais profundo e depende do ponto de referência interno e cultural de cada um. Para um japonês, por exemplo, a distância linguística e cultural é quase um abismo. Já nós, brasileiros, por falarmos uma língua de origem latina e crescermos em um país profundamente marcado pela presença europeia, encontramos alguns pontos mais familiares. Sem falar na grande quantidade de descendentes de italianos no Brasil, que mantêm vivos os rituais, costumes e sabores trazidos por seus antepassados.
A hora do voo
Quando essa fase inicial de resistência começa a diminuir, chega o momento de levantar voo. Eu sabia que não queria ser marginalizada – como, infelizmente, acontece com tantos imigrantes, seja por questões econômicas, políticas, sociais ou até emocionais.
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Vejo pessoas brilhantes que deixam seus países carregando grandes sonhos, mas, ao se depararem com a realidade, a necessidade de sobrevivência fala mais alto. E assim, para muitos a única saída que resta é aceitar trabalhos de renda imediata, mesmo que em condições extremas. Muito triste para aqueles que permanecem a vida inteira nessa situação. O tempo passa, e esses sonhos, antes tão claros, começam a parecer distantes demais para serem alcançados.
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Profissionais talentosos, como engenheiros, médicos, professores… abandonam carreiras inteiras, não por falta de capacidade, mas por um determinismo e expectativa silenciosa que tentam limitá-los. Seja pela dificuldade em validar o diploma, pela barreira linguística, pela falta de contatos (o famoso “quem indica”), ou, infelizmente, pelo preconceito.
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Não há nada de errado nas chamadas profissões de entrada – elas são dignas e essenciais e fazem parte da construção da vida em um novo país. O problema está em acreditar que, por sermos imigrantes, há lugares “permitidos” para nós, enquanto outros nos seriam simplesmente vetados. Morar no exterior, embora seja um sonho realizado, não deve ser visto como um limite, mas como um meio.
Subindo no palco
Após esse processo de adaptação e ressignificação, comecei a me reconectar com meus sonhos e paixões. E é com grande felicidade que compartilho com vocês que, no dia 15 de novembro, realizei dois shows autorais: uma apresentação acústica e intimista do meu novo álbum No Roots (Sem Raízes) – que explora a vida de imigrante, viajante e os recomeços que essa jornada exige.
Os shows aconteceram no TMC Studios, em Biella, uma cidade próxima a Torino, e foram idealizados por Ted Martin. O projeto surgiu após a pandemia, com o objetivo de revitalizar a cena cultural local e criar um espaço acolhedor para artistas de canções originais – quase como levar a música diretamente à casa das pessoas.
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O formato do show foi inovador: “silencioso”. Em vez de usar caixas de som, a voz e os instrumentos foram apresentados em sua amplificação natural. Para a escuta, cada espectador recebeu seu próprio fone de ouvido, proporcionando uma experiência totalmente imersiva. Essa abordagem permitiu que a performance fosse gravada sem interferências ou vazamento de som. Em breve, os vídeos estarão disponíveis no YouTube.
O frio na barriga
Confesso que senti um frio na barriga. Estava há quase um ano longe dos palcos, e o maior desafio não era cantar – era falar italiano em público. Minha maior preocupação era conseguir transmitir a mensagem central da noite. E sim, consegui. Senti-me profundamente realizada ao compartilhar aquilo que considero essencial: a necessidade inegociável de ter fé. Mesmo longe do nosso país de origem, podemos realizar nossos sonhos. Naquele dia, realizei o meu.
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Meu parceiro, Niccolò Fusaro, me acompanhou no violão e no piano. Lotamos as duas sessões. Pessoas que nunca tinham ouvido meu nome decidiram me escutar. Entre os concertos, tivemos um momento de conversa para conhecer cada espectador – e dizem que atraímos aquilo que somos. Na plateia, havia imigrantes e viajantes de alma, pessoas que entenderam exatamente o sentimento que move No Roots. Já passaram pelo projeto pessoas de Irã, Rússia, Turquia, Estados Unidos, Noruega, Espanha, França… tantas nacionalidades. E agora Brasil.
Um legado que fica
É indiscutível que a música seja uma linguagem universal. A arte tem o poder de conectar fronteiras em guerra, pois nos aproxima de nossa parte mais humana: a emocional. Como aconteceu na Trégua de Natal, em 1914, durante a Primeira Guerra Mundial. Soldados britânicos e alemães saíram das trincheiras para cantar e dividiram um momento de paz, onde suas diferenças não importavam.
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Como trago no meu álbum No Roots e neste artigo, ser imigrante requer coragem. Ser imigrante e artista ao mesmo tempo, então… é ser audaz! Mas quando há uma semente dentro de você, seja para morar fora ou alcançar um grande objetivo, acredito que é impossível viver em paz sem ao menos tentar. É uma força intrínseca e visceral, que faz parte da sua alma, e você nem se reconheceria se ela não fizesse parte de você. A estrada não é fácil, por isso é importante aprender a apreciar o processo e os desafios que ele traz.
Os imigrantes italianos no Brasil são um grande exemplo. Construíram cidades e empresas que até hoje carregam um legado imenso. Podemos citar sobrenomes como Matarazzo, Valduga, Tramontina, Bauducco e, claro, o grande artista Candido Portinari. Ouvir suas histórias nos inspira a construir a nossa própria. Assim como eles fizeram, nós também temos o poder de criar algo que ultrapasse o tempo e inspire e transforme esse novo lugar.
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