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UMA VIDA ENTRE LIVROS

O tamanho do universo

Machado de Assis (1839-1908) talvez seja nosso escritor mais conhecido e lido fora do Brasil. Deixou obra vasta, que abrange romances, contos, crônicas, poesias, crítica literária. Quando se fala nele, logo afloram à memória seus mais renomados romances: Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Menos se fala de seus contos, que são de uma profundidade e atualidade admiráveis. Vou me ater a um deles, simples até, porém marcante pela reflexão que nos proporciona.

Refiro-me a “Ideias de canário”, publicado em Páginas recolhidas, em 1899. Um homem (Macedo), “dado a estudos de ornitologia”, é jogado por um tílburi para dentro de uma loja de belchior (brechó, hoje). O dono, “um frangalho de homem”, cochilava ao fundo em meio a todo tipo de velharia que ali se amontoava. De repente, Macedo percebeu um sinal de vida, um canário preso numa gaiola, também judiada pelo tempo. E o mais surpreendente: o canário falava. E não só falava, mas era cheio de ideias.

Perplexo, Macedo seguiu na conversa. Perguntou ao canário se não tinha saudade do espaço azul, infinito, e qual era seu conceito de mundo. O canário respondeu que o mundo era uma loja de belchior, cheio de tralhas, e o resto era ilusão e mentira. Macedo comprou o canário, colocou-o numa gaiola maior, pendurada na varanda de sua casa. Passado um tempo, solicitou que o canário lhe desse um conceito de mundo. “O mundo é um jardim cheio de flores e arbustos, alguma grama e um pouco de azul por cima. Tudo o mais é ilusão e mentira.”

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De tanto estudar o canário, Macedo adoeceu e teve que se recolher. Recomendou demais ao criado que tratasse bem o pássaro e que nem pensasse em deixá-lo fugir. Mas ele fugiu. Desesperado, Macedo saiu a procurar seu bichinho. Encontrou-o no alto de uma árvore. Implorou-lhe que voltasse para continuar suas conversas, trocar ideias. O canário riu e, questionado sobre o que era o mundo, definiu-o como um espaço infinito, azul, com o sol por cima. E voou para a amplitude.

Muitas vezes, associei as ideias desse conto ao mundo da leitura. Se alguém leu apenas um livro, será o melhor a que teve acesso. Se leu dois, alargou sua visão e já pode fazer uma escolha. À medida que for ampliando seu estoque, terá um capital cada vez mais vasto, o que lhe permitirá expandir seu universo pessoal a uma dimensão inimaginável. Perceberá que o mundo é muito mais do que uma loja escura de belchior.

Não falo apenas de livros de literatura. Não precisamos ficar restritos a esse segmento, embora seja maravilhoso. Podemos incluir filmes, obras científicas e técnicas, de política, economia, filosofia, um rol infinito de opções que nos permitem enriquecer em muito o universo que habitamos. Ao encerrar o conto, Macedo lembrou ao canário que o mundo já fora tudo para ele, inclusive uma loja de belchior. O canário sorriu e retrucou: “Mas há mesmo lojas de belchior?” E não falou mais que o resto era ilusão e mentira.

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