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Pandemia

HISTÓRIA: como Santa Cruz enfrentou a gripe espanhola

Foto: Rafaelly Machado

No dicionário, o medo está descrito como algo afetivo provocado pela consciência do perigo ou que, ao contrário, é capaz de provocar este sentimento. O medo é uma reação ao inesperado, ao que não se pode ver, tocar ou sentir. Mais ou menos o que acontece em uma pandemia, que, de forma invisível, traz a peste e se instala, expondo o lado mais frágil do humano: o pavor da morte.

Em uma semana de pesquisas, a Gazeta do Sul mergulhou na história e voltou no tempo para recontar uma história de quase 102 anos. Considerada a pior das pandemias do mundo até então, a gripe espanhola – que, segundo historiadores, dizimou um terço da população da Terra – passou por Santa Cruz do Sul sem produzir uma única morte. Os documentos que narram a estratégia do município para conter o avanço da doença vinda do Hemisfério Norte exibem as principais formas de evitar o contágio. O isolamento, usado como alternativa nos tempos em que não existia sequer antibiótico, pode ter sido o divisor de águas no curso da temida pandemia.

Isolamento é o tratamento indicado há quase 102 anos
Em 8 de novembro de 1918, ou seja, há quase 102 anos, o intendente de Santa Cruz do Sul, Gaspar Bartholomay, editou um decreto municipal criando uma série de medidas para o enfrentamento da gripe espanhola. Acompanhando o movimento da doença que, ao redor do mundo, dizimava populações, o intendente – que hoje corresponde ao cargo de prefeito – agiu na prevenção do contágio e contabilizou um saldo positivo. No início de 1919, o relatório entregue ao presidente do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros, veio com um “zero” quantificando o número de mortes por gripe espanhola em Santa Cruz do Sul durante o ano de 1918.

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No primeiro ano da peste nenhuma morte foi registrada entre a população de aproximadamente 20 mil habitantes. Medidas que destacaram a higiene, o isolamento e a informação foram as armas da equipe de Gaspar Bartholomay para espantar daqui a sombra da morte. A prevenção foi fundamental para conter a gripe, que seria a maior pandemia moderna que se tem notícia até hoje. Podem ter ocorridos casos no interior, pois nas comunidades, quando alguém morria, era velado e sepultado nos cemitérios locais, sem nenhum registro.

Estes dados são fruto da pesquisa do doutor em História Ricardo Schmachtemberg. Ele analisou documentos da Intendência, que era o órgão equivalente à Prefeitura de Santa Cruz hoje. Também vasculhou as notícias publicadas na Gazeta de Santa Cruz, jornal que circulou entre 1918 e 1919. “Estes documentos pertenciam ao Colégio Mauá. Na época da pesquisa eu queria entender como Santa Cruz lidou com a urbanização e a modernização da área urbana. No meio disso estava o período da gripe espanhola.”

Segundo o professor, o decreto de Bartholomay continha ações práticas de isolamento, tratamento e controle sanitário para evitar o contágio do vírus da Inflenza. “Sabia-se que mais cedo ou mais tarde a gripe chegaria a Santa Cruz, e diferente do governo do Estado e de outros municípios, o intendente agiu. A primeira medida foi controlar quem chegava de trem ao município”, explicou o doutor em história. Da Europa e dos Estados Unidos, a gripe espanhola viajou de navio para a América do Sul. O vapor que transportava passageiros e mercadorias trouxe a doença. Como a ligação de Santa Cruz com os portos se dava por meio da ferrovia, Bartholomay restringiu a entrada de quem vinha de fora.

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A estação férrea foi o primeiro ponto de barreira da gripe espanhola em Santa Cruz . O local, que é um dos cartões-postais do município, guarda um segredo agora revelado: a atenção aos visitantes talvez tenha sido fundamental para evitar o contágio

O intendente criou o Serviço de Inspetoria e Higiene Municipal, coordenado por dois médicos. Outros profissionais da área da saúde examinavam os passageiros recém chegados de trem. “Todos eram verificados. Quem não apresentava sintomas da gripe era liberado, quem vinha doente era impedido de circular pela cidade”, disse.

O prédio que abrigava a Cadeia Pública, hoje sede da Biblioteca Municipal Professora Elisa Gil Borowski, foi transformado em um hospital de campanha para os doentes da gripe espanhola. “Quem tinha a doença ia para lá, os demais pacientes eram examinados e cumpriam isolamento em suas casas.” O pesquisador explicou que quem era colocado em isolamento, assim deveria permanecer até que acabassem os sintomas. “Uma das orientações, que foi amplamente divulgada pela Prefeitura, era para que o paciente repousasse em local com circulação de ar puro”, detalhou Schmachtemberg.

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O combate aos sintomas era feito com chás e ervas medicinais, pois no início do século 20 ainda não existiam remédios potentes. A própria penicilina foi descoberta dez anos depois, em 1929. Os médicos do Serviço de Inspetoria e Higiene Municipal visitavam doentes em recuperação em suas casas.

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Da Cadeia Pública resta o prédio usado hoje como biblioteca. Em 1918, recebeu um hospital de campanha, parecido com o que atualmente fez a Prefeitura

Os fragmentos de um período quase apagado
Além dos arquivos a que o professor Ricardo Schmachtemberg teve acesso, não colecionam-se muitas lembranças dos anos de 1918 e 1919 em Santa Cruz do Sul.

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O Hospital Santa Cruz já atendia a comunidade e ainda preserva os livros de registros dos pacientes do período. O documento centenário contém informações de nome, filiação, cor, religião, data de internação, alta e observação dos atendimentos. Também era anotado se o paciente havia morrido na casa de saúde ou se fora transferido para tratamento em outro município. Porém, a causa da internação e o diagnóstico médico eram campos ignorados. Por meio destes livros, é impossível dizer se houve muitos casos da doença em Santa Cruz do Sul.

A Mitra Diocesana ainda não havia sido instalada. Todos os livros de registro de batizados, casamentos e óbitos da Igreja Católica pertencem ao acervo da Arquidiocese de Porto Alegre. O registro da Igreja Matriz – construída antes da Catedral São João Batista – revela que em 30 de outubro de 1918, todos os seminaristas foram liberados para a casa dos pais, por causa da gripe espanhola. No início de novembro daquele ano, as escolas foram fechadas. Soldados, que haviam saído de férias, foram reconvocados para ajudar no controle do isolamento.

Segundo o coronel Valmir José dos Reis, comandante do Comando Regional de Policiamento Ostensivo do Vale do Rio Pardo (CRPO-VRP), na época a Brigada Militar colaborou nas medidas de contenção e segurança adotadas no período de isolamento em Santa Cruz do Sul. Porém, não existem documentos físicos que possam contar detalhes desta operação.

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Nos registros históricos do Futebol Clube Santa Cruz, apenas consta o cancelamento da primeira edição do Campeonato Gaúcho. O Galo não estava na disputa, mas a memória do clube atesta que a competição só foi possível em 1919, passado o pior momento da gripe espanhola no Estado.

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Trauma e pânico
O padre Roque Hammes é o coordenador da Pastoral da Comunicação da Diocese de Santa Cruz do Sul. Ele diz que a gripe espanhola disseminou o medo pela região. Na época, a família dele morava em Arroio do Meio, no Vale do Taquari. “O velório de meu bisavô foi de caixão fechado, pois havia risco de contaminação. A minha mãe sempre repetia que havia sido um trauma para quem viveu naquele tempo”, contou Hammes.
A historiadora e coordenadora do Museu do Colégio Mauá, Maria Luiza Rauber Schuster, lembrou que a mãe, Benigna Bohn Rauber, repetia que quem ficava doente era colocado em isolamento. “Naquela época também foi usado o isolamento, pois era o remédio disponível. Apesar de todos os recursos da química, da ciência, algo simples como ficar em casa ainda é um recurso inteligente que precisa ser respeitado.”

No Estado, homens foram maioria entre os mortos
Para resgatar a história da gripe espanhola no início do século 20 o Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul, mantido pelo Sindicato Médico (Simers), realizou uma força-tarefa, há dois anos. Em 2018, completaram-se 100 anos da pandemia e, para resgatar o fato, o museu realizou uma exposição em Porto Alegre.

Segundo as pesquisas coordenadas pela museóloga Angela Pomatti e pela historiadora Glaucia Kulzer, a origem da gripe espanhola é incerta. Os primeiros registros da doença ocorreram em março de 1918, em campos de treinamento militar nos Estados Unidos. Logo em seguida a Influenza se alastrou para diversos países europeus, como França, Alemanha e Espanha. “Em setembro, a gripe espanhola chegou ao Brasil. As primeiras manifestações dela em Porto Alegre ocorreram no fim de outubro de 1918”, disse Angela.

A museóloga explicou que o nome da gripe foi associado ao provável fato de que durante a pandemia, a Espanha não restringiu a circulação de informações sobre a doença. No restante da Europa a imprensa estava sob censura em virtude da Primeira Guerra Mundial. “Pelo desconhecimento do agente causador, pois no período o microscópio eletrônico ainda não havia sido inventado, prevaleceram as medidas profiláticas individuais contra este inimigo invisível.”

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Como no início do século 20 não havia medicamentos e vacinas para a prevenção de doenças infecciosas e virais, eram poucas as opções de tratamento aos doentes diagnosticados com a gripe espanhola. “Usavam-se analgésicos e anti-inflamatórias, bem como a quinina, eficaz no tratamento da malária e outras doenças que causavam febres altas. Como prevenção, os médicos prescreviam repouso e cuidados com a alimentação e hidratação”, informou Angela.

A Secretaria de Negócios do Interior e Exterior apresentou um relatório sobre o Rio Grande do Sul em 30 de agosto de 1919. O documento da época revelou que os mortos pela gripe espanhola eram, em sua maioria, homens com idade entre 20 e 50 anos. “O maior legado da gripe espanhola pode ter sido a importância da prevenção. É inegável que houve um grande avanço, tanto na alimentação quanto nas condições sanitárias à disposição da população, o que melhora a capacidade dos pacientes de resistirem à infecção. Hoje também temos acesso a melhores recursos, graças às pesquisas científicas, desenvolvidas por profissionais da saúde”, resumiu o presidente da Associação de Amigos do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul, o médico Marcos Rovinski.

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A relevância da informação para controlar a doença
Nas décadas de 1910 e 1920, o Kolonie – jornal impresso em língua alemã – era o meio de informação com maior influência em Santa Cruz do Sul. Porém, o fato dele ser escrito em alemão gótico, de difícil leitura e interpretação, e a restrição de notícias em vista da Primeira Guerra Mundial, desacreditaram o veículo como meio para ser usado pelo Município, pois uma das estratégias da Intendência era utilizar o jornal para comunicar as medidas que todos deviam seguir.

Com a ajuda da professora de língua alemã Cíntia Betina Pagel, a Gazeta do Sul visitou o acervo do Kolonie (foto) guardado pelo Centro de Documentação da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). No período de setembro de 1918 a janeiro de 1920, o jornal aborda de forma superficial o tema. Relatos de guerra e notícias vindas da Europa resumem o conteúdo.

“A Intendência usou o jornal Gazeta de Santa Cruz para se comunicar com os moradores. Com anúncios diretos, as orientações de higiene e isolamento eram publicadas”, explicou Ricardo Schmachtemberg. Segundo o pesquisador, a força da informação e as medidas de prevenção podem ter sido cruciais para o controle da gripe. “As informações oficiais, que constam no relatório da Secretaria de Negócios do Interior e Exterior do governo do Estado, revelam que o município não teve mortes em decorrência da gripe espanhola, enquanto Porto Alegre, durante o ano de 2018, contabilizou 1.918 mortos.”

É preciso viver cada um na sua tribo
O professor doutor em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Jorge Luiz da Cunha, justifica a disseminação de doenças ao redor do mundo com o início do processo de globalização das civilizações. Segundo ele, uma situação semelhante à pandemia do coronavírus tem explicação entre os séculos 11 e 14. “As Cruzadas europeias abriram aquele continente para relações de conflitos militares com os povos do Oriente Próximo e Oriente Médio. Estas ações foram ligadas à estratégia política de libertação cristã da Terra Santa, hoje Jerusalém”, disse Cunha.

O pesquisador revelou que em termos financeiros, os resultados das Cruzadas foram positivos. Eles deram abertura ao surgimento das classes sociais urbanas, como comerciantes e artesãos. Cidades existentes cresceram e novas surgiram. “Mas este rompimento do isolamento agrícola e camponês que caracterizou o que chamamos de Idade Média também provocou uma das maiores tragédias conhecidas, a Peste Negra ou Bubônica.”

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Cunha fala que no ano de 1330 a Peste Negra iniciou na China e foi levada por caravanas de comércio para as regiões mediterrâneas. A propagação da doença, inicialmente, ocorreu por meio de ratos e, principalmente, pulgas infectadas com o bacilo. Acreditava-se que ele era transmitido às pessoas quando essas eram picadas pelas pulgas. “Em um estágio mais avançado, a doença começou a se propagar por via aérea, nos espirros e gotículas. Entre os anos de 1338 e 1352 todos os países da Europa foram atingidos.”

Na época, a doença era igualada ao Apocalipse, descrito como fim dos tempos na Bíblia. Diante da precariedade do conhecimento e das práticas médicas executadas sem higiene, em associação à baixa qualidade das habitações, estima-se que mais de um terço da população da Europa Ocidental foi atingida e exterminada. Calcula-se que a Peste Negra tenha matado mais de 25 milhões de pessoas no mundo.

“Esta não foi a única pandemia que produziu grandes efeitos sociais e econômicos na Europa e no resto do mundo. Várias outras foram provocadas pelo trânsito humano no planeta”, afirmou. O pesquisador relatou que o contato dos nativos habitantes de toda a América com os europeus, que começaram a chegar a partir do final do século 15 e traziam consigo bactérias, bacilos e vírus, foi responsável pela morte da maior parte da população americana nativa. “No Brasil, por exemplo, calcula-se que cerca de 5 milhões de habitantes indígenas do território geográfico atual tenham sido mortos por doenças trazidas da Europa”, salientou Cunha.

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Cunha: as pandemias tiveram início com o trânsito dos povos na Idade Média

A lição moral que se deve aprender com o novo coronavírus
Segundo o professor Jorge Luiz da Cunha, da UFSM, embora a igualdade entre os povos seja uma busca do homem contemporâneo, atividades sociais e econômicas nem sempre promovem esta condição. Porém, na relação do homem com as demais formas de vida, como as bactérias e vírus, a própria vida coloca todos no mesmo patamar.

Para Cunha, nenhum ser humano pode alcançar a felicidade como graça divina de um ou mais deuses, por meio da filiação ideológica ou doutrinária, sucesso econômico restrito ou acumulação de riquezas. “Felicidade nasce da consciência de si como resultado da experiência humana com os outros, respeitando e valorizando todos em todas as suas diferenças”, ensinou.

Marcelo Carneiro é infectologista em Santa Cruz do Sul e relata que o surgimento de doenças contagiosas como as pandemias é cíclico. De tempos em tempos a natureza mostra sua força de controle sobre os seres vivos, determinando quem pode sobreviver ou não. Trata-se da seleção natural, desenvolvida pelo inglês Charles Darwin ainda no século 17. Pelo modo de vida humano, em constante modificação desde a revolução industrial, no século 19, tempo em que as pandemias tornaram-se mais frequentes, a vida tornou-se mais exposta a esta seleção. “Não é por escolha. A biologia da sobrevivência das espécies é determinada pela capacidade de adaptação ao vírus”, justificou.

Registro do tratamento de pacientes com gripe espanhola no Rio Grande do Sul, onde a maioria dos mortos foram homens

Seis em 120 anos
A pesquisadora da Universidade de Brasília (UNB), Ligia Maria Cantarino da Costa, mapeou seis pandemias no período de1889 a 2009. O estudo dela, que é anterior ao coronavírus, dedicou-se a avaliar questões sanitárias do sistema de saúde brasileiro desde a pandemia de 1889, supostamente provocada pelo vírus Influenza A, variações H2 ou H3. Como os cientistas da época não dispunham da tecnologia contemporânea – o mesmo ocorre com a gripe espanhola –, os pesquisadores não conseguem afirmar com precisão se o evento de 1889 foi causado pelo Influenza A.

Além de modificar protocolos de cuidado com doenças infectocontagiosas, as últimas pandemias mostraram, segundo a pesquisadora, que uma rápida articulação com respostas do poder público a eventos de contaminação em massa precisa ser uma prioridade sanitária mundial.

As pandemias
1889 – 1890 até 1,5 milhão de mortos
Influenza A, subtipo H2 ou H3

1918 – 1920 até 100 milhões de mortos
Gripe espanhola, Influenza A, H1N1

1957 – 1958 até 2 milhões de mortos
Gripe asiática, Influenza A, H2N2

1968 – 1969 até 3 milhões de mortos
Gripe de Hong Kong, Influenza A, H3N2

1977 – 1978 sem registros
Gripe russa, Influenza A, H1N1

2003 – 2004 300 mortos
Gripe viária, Influenza A, H5N1

2009 17 mil mortos
Gripe A, Influenza A, H1N1

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