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ROMEU NEUMANN

O enigmático desafio

Respeito e acho válido todo esforço para tentar antever o que será de nós depois desta pandemia. Mas não me convenço de nada. A história da humanidade não se guia pela lógica. Nós somos imprevisíveis por natureza, desde crianças. Assim como a vida é imprevisível.

Menino do interior, filho de pais agricultores, plantadores de tabaco, vi quase todas as famílias que conheci na época se ocuparem com as mesmas atividades. Plantava-se milho, arroz, batatas, mandioca, cana e várias culturas mais; porém, era a produção e a venda do tabaco que garantia, a principal fonte de renda das propriedades.

Além de ganhar a vida com o tabaco, meu pai, seu Alfonso, era também fumante. Sempre tinha pacotes com vários maços em cima de um armário alto na cozinha, longe do alcance de crianças ou indesejáveis filões. Mas também não dispensava seu palheiro com fumo selecionado e cuidadosamente picado.

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Na época, é bom que se diga, fumar, sobretudo para homens e rapazes, era algo tão natural quanto acordar com preguiça numa manhã chuvosa de segunda-feira. Para os adolescentes, os mais tímidos em especial, um cigarro era uma espécie de talismã para acalmar mãos desajeitadas que denunciavam nervosismo, insegurança, receios de toda ordem.

Certo dia, ainda menino, meu pai me surpreendeu depois de retornar de uma das raras idas de ônibus à cidade, com um enigmático desafio.

Eu tinha de 10 para 11 anos, não sei precisar. Era hora do chimarrão em família, no início da noite, mas meu pai estava diferente. Sacou um estojo do bolso e abriu à minha frente. Sobre o veludo vermelho reluzia um relógio cromado, para mim o mais lindo que já tinha visto, e que nem nos mais extravagantes sonhos poderia enxergar no meu braço de guri. Nenhum garoto da minha idade e naquela região onde morava tinha um relógio como aquele.

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Mas antes que me deslumbrasse mais ainda, meu pai me encarou, olho no olho, e lançou o desafio: “Se me prometer que não vai fumar enquanto depender de mim, este relógio será teu”. Pego de surpresa, e sem condições de dimensionar a gravidade do compromisso que estava assumindo, assenti sem pestanejar. Mal cabia em mim de tanta felicidade. Mas uma pontinha de dúvida me intrigava: o que teria motivado meu pai a tomar essa inusitada iniciativa?

Nunca soube. Preferi pensar que ele tinha suas razões. Honrei, o quanto pude, o meu juramento e não fumei na presença do meu pai enquanto estudava e dele dependia. Hoje, já se passaram 12 anos que não levo um cigarro à boca. Mas confesso que, por longo período, cedi ao sabor das baforadas com um chimarrão, um café ou para aliviar uma tensa e estafante jornada de trabalho.

Mesmo assim, acho que ele tornaria a me entregar o relógio. Porque somos imperfeitos mesmo. Porque fazemos escolhas. E porque, independentemente do enigmático desafio, me superei.

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Recordar essa experiência tão emblemática da infância me conectou com uma frase que por muitos anos mantive sobre minha mesa de trabalho e que por vezes me acalmava, outras vezes me servia de inspiração. Atribuída a Abraham Lincoln, adotei como um código pessoal de conduta: “Ser feliz não é ter uma vida perfeita, mas deixar de ser vítima dos problemas e se tornar autor da própria história”.

Continuo achando que somos imprevisíveis por natureza. Que o momento seguinte ao que estamos vivendo é incerto. Mas nós temos o direito à escolha. Inclusive a de reformar as escolhas que fizemos para assumir as rédeas da nossa história.

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