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HISTÓRIA

200 anos da imigração: “Na época, a Alemanha eram 36 reinos, ducados e cidades”

Foto: Alencar da Rosa

Seu Moacyr e dona Hilda Flores em seu apartamento no Bairro Rio Branco, na capital, com a vista que se descortina para o norte e permite vislumbrar a área do Parcão

Um casal de historiadores gaúchos é responsável direto por uma das contribuições mais valiosas e efetivas aos estudos sobre as circunstâncias da imigração alemã no Sul do Brasil. Dona Hilda Agnes Hübner Flores, de 90 anos, foi tema desta série na edição da Gazeta do Sul dos dias 26 e 29 de agosto. Natural de Linha Duvidosa, em Venâncio Aires, iluminou em especial a participação da mulher no cotidiano das colônias.

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Seu marido, o porto-alegrense Moacyr Flores, de 88 anos, por sua vez, ocupou-se de investigar a situação na Europa e também no Brasil naquela mesma época. Em simultâneo, estudou a fundo o ambiente em território rio-grandense, uma região envolvida, no século 19, em sucessivas guerras e conflitos, dos quais a Revolução Farroupilha foi o mais longo. Como historiador, é autor de cerca de 25 livros, com ênfase em História do Brasil, além de inúmeros artigos em publicações especializadas. Ao lado da esposa, seu Moacyr recepcionou a Gazeta do Sul para falar de seus trabalhos em historiografia.

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Um olhar inspirado pela história social

Além da paixão comum pela História, seu Moacyr Flores e dona Hilda Agnes Hübner Flores também compartilham, em sua vida de casal e familiar, diferentes influências étnicas e culturais. Que, no caso dela, remetem ao legado trazido por seus antepassados boêmios, que migraram para a Linha Duvidosa, na região serrana de Venâncio Aires.

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Depois dos estudos iniciais em sua localidade natal, e de uma passagem pelo Colégio das Irmãs, em Santa Cruz do Sul, Hilda havia se fixado em Porto Alegre a fim de cursar Serviço Social. Mas já era estudante de Filosofia, área pela qual optara, quando conheceu o porto-alegrense Moacyr Flores. Com ele acabou se casando em janeiro de 1962, e juntos tiveram os filhos Ana Berenice, Marcia e Marcos (este deu-lhes os netos Luisa e Tales).

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Moacyr nasceu em 14 de janeiro de 1935, na Rua Benjamin Constant, praticamente na mesma área na qual hoje residem, no Bairro Rio Branco, ala leste da capital gaúcha. Como refere, em seu tempo de infância e de juventude, Porto Alegre era uma cidade ainda muito pacata, cuja principal referência era o Centro Histórico, sendo que em outros bairros ou regiões concentravam-se diferentes etnias (alemães, italianos, poloneses…). Sua parteira inclusive era de origem alemã.

Ainda bastante jovem, começou a trabalhar como desenhista, em organismo que tinha sede na Rua Riachuelo. Naquelas circunstâncias conheceu Hilda, que morava nas imediações. Então inscreveu-se em curso de Geo-história (que unia Geografia e História), na PUCRS, visando, mais tarde, fazer um concurso.A paixão pela História foi imediata e absoluta. Uma vez que, da infância, trazia a memória dos romances franceses que a mãe lia para ele, a predisposição para a História Social foi algo quase natural.

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Além da graduação, seu Moacyr fez mestrado e doutorado em História pela PUCRS, e ali também lecionou, bem como na Ufrgs e na Furg, tanto na graduação como na pós-graduação. Ao lado da atuação como professor, seu esforço de pesquisador assegurou contribuições fundamentais aos estudos históricos e culturais. Lançou seu primeiro livro em 1973, e ao longo das cinco décadas seguintes publicou em torno de 25 obras.

Como historiador, ocupou-se tanto da História do Rio Grande do Sul quanto da brasileira, sendo que o Dicionário de História do Brasil, em quarta edição (2001, 2002, 2004 e 2008), é de consulta obrigatória. Temas como Revolução Farroupilha, República Rio-Grandense, personagens marcantes e o contexto da ocupação do território gaúcho, entre outros, merecem a sua atenção.

Colonos tiveram de aprender novas técnicas

Seu Moacyr menciona algumas particularidades associadas ao ambiente a partir do qual saíram os imigrantes de origem germânica ao longo de boa parte do século 19. Ele recorda que a Alemanha como é conhecida hoje sequer existia na época. Aquela área era composta por 36 estados, entre reinos, ducados e cidades. Entre os que se destacavam estavam o reino da Prússia, que correspondia a cerca de dois terços de todo o território e de toda a população, governada pelos Hohenzolern, e o Império da Áustria, governado pela casa de Habsburgos, terra de origem dos antepassados de dona Hilda (hoje, a Boêmia fica na República Tcheca).

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Em suas pesquisas, Moacyr Flores também contemplou a imigração alemã para o Sul do Brasil | Foto: Alencar da Rosa

Antes que Bismarck liderasse a unificação dos diversos estados, em 1871, levando ao surgimento da Alemanha como Estado-nação, cidadãos de diferentes reinos acabaram, por circunstâncias econômicas, políticas e sociais, migrando para outras regiões. Diante das notícias de que o Brasil (em especial o extremo sul desse país) estava receptivo a receber colonos, muitos se determinaram a, em projetos de colonização, tomar esse destino.

Flores observa que, com a bagagem de literatura e cultura francesa que trazia de casa, ingressou na História já com um olhar e um conhecimento bastante diferente da História positivista, focada em heróis ou personagens individuais, ou de idealização do passado. Voltou-se para a História Social. E recorda que chegou a haver, de parte de alguns reinos alemães, a pretensão de transformar o sul do Brasil em colônia de domínio, uma área de influência alemã. Dom Pedro I não aceitou, determinado a manter a colônia de povoamento, de ocupação, com absoluta soberania brasileira.

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Menciona ainda que houve dois tipos de colonização: a imperial, ou oficial, custeada pelo governo brasileiro, como a de São Leopoldo, e com as terras distribuídas entre os colonos, e outras, públicas ou privadas, em que os colonos precisavam arcar com altos custos. Nos primórdios, diante do total desconhecimento dos imigrantes em relação a técnicas de cultivo ou construção de benfeitorias (casas, carroças, implementos), o Império destacava inclusive índios das Missões para auxiliá-los e orientá-los.

ENTREVISTA – Moacyr Flores: Historiador, escritor e professor universitário aposentado

Gazeta do Sul – Quem eram os alemães que migraram para o Brasil, no início da colonização?

A grande maioria deles eram Lumpen, isto é, proletários, e vieram para cá até em situação de doenças. Uma das coisas que os estados alemães da época fizeram foi enviar as pessoas doentes, ou velhas. O Brasil começou a adotar a quarentena, no Rio, porque mandavam doentes, livrando-se deles. A imigração para eles, os estados, foi uma solução. Esse comportamento da Alemanha não era caso único. A Inglaterra, que foi a primeira a se industrializar, foi também a primeira a mandar para fora aqueles que não tinham emprego. São os proletários, que passam fome, que não têm trabalho. Esses é que saem. Por exemplo: no caso específico da Boêmia, quem é que sai? O aprendiz. O mestre não. Este tem emprego garantido na fábrica, e até tem de ensinar os outros. Então, ele não sai; se quiser emigrar, nem recebe licença. Acontece que hoje está havendo um romantismo da origem dos que vieram para cá…

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Que contribuições esses imigrantes trouxeram para o Rio Grande do Sul e o Brasil?

No início, eles não falavam português. Quer dizer, eles são isolados. E, ao contrário, eles é que vão receber influência. É o caso dos tropeiros, que descem a Serra com sua tropa, para essas áreas. Esses tropeiros são elementos de ligação. Depois, são os caixeiros-viajantes, que vão estabelecer o contato com a sociedade brasileira. Como os colonos eram abandonados no mato, tinham de abrir estradas, e logo cuidar de outras questões. Um deles, o que entendia mais do que os outros, virava professor. Havia quatro ou cinco crianças em idade de aula, e alguém deles era professor, pago pelos moradores. Que acabam construindo a escola. Antes da igreja vem a escola, que era emprestada nos finais de semana para o padre. Isso é importante: estrada, economia, escola, cultura. Nessa altura, eram estranhos, porque não entendiam português.

Com o tempo houve mais aproximação…

Sem dúvida. Aqui em Porto Alegre, estudei em grupo escolar em que estudavam também filhos de alemães. Havia muitos alemães, e descendentes deles, aqui na capital. Estudávamos todos juntos. Aliás, o que menos tem em Porto Alegre é porto-alegrense… (riso) E os alemães não brigavam. A guerra era longe daqui, na Alemanha. Os alemães daqui eram brasileiros, e brincávamos juntos. Embora nossa cultura, a minha, em especial, fosse francesa, porque minha mãe, na minha infância, lia romances franceses para mim.

Hoje, o senhor entende que os temas históricos estão devidamente contemplados? Na imprensa, por exemplo?

É diferente. Jornalistas tratam do presente. Para tratar do passado, é necessário atentar inclusive em cada palavra. Citando um exemplo: padre Antônio Vieira. Para entender o sermão dele, tem que entender o significado das palavras. Escreve-se da mesma maneira, mas significa outra coisa. Um exemplo: a palavra “estância“, no tempo do padre Antônio Vieira, em 1600 e pouco, significava trincheira, local onde se espera o inimigo. Veja que mudou o sentido da palavra estância. Isso aqui tudo era território espanhol, então o português que vem para cá tem de lutar e expulsar o espanhol. A casa onde ele mora é uma trincheira, uma estância. Como escrever sobre o passado se a pessoa não sabe o significado da palavra em cada época?

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O período da chegada dos alemães coincidiu com um tempo em que até as fronteiras estavam sendo fixadas e a ocupação territorial gaúcha ocorria, não é mesmo?

De fato, na Revolução Farroupilha, a população do Rio Grande do Sul era de 170 mil habitantes. Hoje, tem bairros de Porto Alegre com mais habitantes que havia naquela época em todo o Estado. Eram locais defensivos, com fortaleza: Porto Alegre, Rio Pardo, Rio Grande. A história é apaixonante especialmente por isso. A gente faz um mergulho no passado vendo até a origem da palavra.

A forma de olhar para a História era diferente, na época em que o senhor fez a sua formação, e depois, quando começou a lecionar?

Pertencemos a um momento em que estava havendo uma mudança na forma de ver a história, ver o passado. Não é mais um passado de heróis. Na Europa, um exército em marcha saía sem comida.Onde ela estava? Por onde passavam. Assaltavam as casas, pegando a comida do camponês. A guerra significa a miséria do próprio povo. No Rio Grande do Sul o pessoal se alimentava de carne, havia gado em abundância, mais gado que gente. Bastava abater um animal e se tinha comida.

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Com que temas o senhor tem se ocupado recentemente? Algum livro por chegar?

Para publicar um livro, em primeiro lugar a gente deixa numa gaveta adormecendo por um ou dois anos. Tenho adormecido um livro sobre o Positivismo aqui no Rio Grande do Sul. Lancei um sobre a Idade Média. Estou pegando as minhas aulas, para as quais fazia esquemas, e desenvolvendo esses esquemas. Na história do Brasil, estou engasgado com Tiiradentes. Não era nada daquilo que nossa história conta sobre Tiradentes. Era chefe de um movimento do qual o comandante militar da região fazia parte. Como é que um alferes, segundo-tenente, vai ser o chefe do grupo? É antes uma questão de hierarquia militar. Além disso, ele era mulato, os outros eram brancos. Todos os outros foram degredados para a África, com cargos públicos; ele foi esquartejado. Aquilo ali foi apenas uma cortina de fumaça para ocultar a corrupção do governante da época. Ele foi bode expiatório.

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