Nossa pequena propriedade rural deixou em cada um certamente as mais queridas e também estranhas lembranças. Nela havia águas infindas que nenhuma estiagem fosse capaz de silenciar, havia pássaros livres e coloridos (que alguns dos nossos bodoques assassinos teimavam em, sem nenhuma justificativa, perseguir e matar), havia alguns animais de subsistência, algum cavalo para serviço, carroça para recolher a colheita e o trato de cada dia. Era um mundo muito pequeno, mas nele cabiam nossas aventuras e igualmente os maiores sonhos.
Estavam sob o mesmo teto o paiol, o estábulo das vacas leiteiras e o galpão para a carroça e todos os apetrechos para tocar os serviços da propriedade. Ali estavam o martelo, a torquês, as enxadas, os facões, as foices, o fole para cachimbar as formigas, o grande tacho para produzir a schmier e o melado. Servia também para derreter o toucinho, fornecendo-nos a banha e o saboroso e inesquecível torresmo.
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No galpão, abrigavam-se os tropeiros quando de sua passagem com as tropas destinadas aos abatedouros da região. Homens rudes e valentes, percorriam longas e inacreditáveis distâncias, tangendo um gado cansado de tanto andar, faminto e sedento após dias de viagem ao encontro do término fatal. Criança, eu ia com meu pai sentar com eles, à noite, em torno da fogueira, para ouvir suas fascinantes histórias de destinos andarilhos. Narravam com aquele sotaque campeiro que só eles dominavam com sabor e sabedoria.
Nem eles escreveram essas histórias, até porque escrever não era sua arte, nem eu me dava conta de que uma riqueza imensurável fluía nesse espaço e mereceria ser perenizada. Hoje, já distante há muitos anos, busco reencontrar esse tempo perdido. As imagens restam opacas, envoltas nessa névoa do quase esquecimento, mas ainda em tempo de registrar para sobreviver.
Havia alegrias nesse mundo reduzido, quase todas elas minúsculas, mas suficientes para preencher nossas almas infantis. Pescar no riacho filetado, colher guabirobas, ananás, goiabas, pêssegos, chupar cana, perseguir preás, olhar estrelas em tempo sem eletricidade, tudo era maravilhosamente simples e bom.
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Nossos jogos olímpicos compreendiam saltar com vara sobre pequenas valetas, cavalgar algum cavalo já prestes a partir, arrancar rosetas dos nossos pés invariavelmente descalços, jogar bola com bexiga de boi, pular corda, jogar bolita com os amigos, a felicidade destituída de qualquer luxo sempre nos cercando por onde quer que andássemos. Uma das aventuras mais arrojadas era subir em pés de ariticum, que chamávamos fruta da china ou, mais precisamente, frutichina. Em geral, as mais atraentes se achavam nas extremidades dos longos galhos, o que demandava e coragem e risco para serem alcançadas.
Em nossa propriedade, ainda que reduzida, morava mais uma família. Era grande e seus meninos se tornaram meus amigos e parceiros de infância. Eram agregados, assim se denominavam, e dividiam o trabalho e as colheitas com a nossa. Com eles, morava um estranho mas perfeitamente integrado, João. Foi com ele que aprendi que lobisomens existem. Em torno da casa deles, numa pequena elevação, havia um pinheiro e outras árvores sob as quais, segundo João, em noites de lua cheia, perambulava assustadoramente um lobo em forma de homem, um lobisomem, convivendo e conversando com almas penadas. No mesmo espaço das nossas brincadeiras, andaria esse ser misterioso e aterrador, que nunca mais se apagaria da minha memória. Ele continua existindo.
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