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elenor schneider

Falamos demais

Um dos grandes nomes da literatura gaúcha é Aldyr Garcia Schlee, falecido em 2018. Tive a graça de muitos momentos de convivência com ele, seja em eventos fora, seja aqui em nossa região. Só para lembrar: além de excelente escritor, foi o criador da camiseta canarinho da seleção brasileira. Dizia-se ateu, no entanto confessou ter sobre sua mesa de trabalho várias edições da Bíblia, que consultava frequentemente para sustentar com solidez o conteúdo de seus textos e observar como eram elaborados.

A Bíblia não tem um título, assim como vemos em romances, poesias, contos, crônicas. Ela é o livro em si. Em grego, LEIA MAIS TEXTOS DE ELENOR SCHNEIDERsignifica o livro em essência. Eivada de narrativas, nela nos deparamos com relatos e reflexões do mais diversificado teor. No Antigo Testamento, impressiona a quantidade de conflitos e guerras ali registrados. Aqueles territórios, onde a maior parte dos fatos narrados acontece, parece que contêm em si uma profunda semente de ódio, de intolerância que, de tempo em tempo e de parte a parte, não cessa de reaparecer. Passam-se séculos, há incontáveis exortações, porém a paz se apresenta como visita indesejada.

A Bíblia está entre minhas leituras diárias. Há um tempo me deparei com um texto de São Tiago que, no capítulo três, traz o título de “pecados da língua”, no caso aqui não da língua portuguesa ou qualquer outra, mas daquela que usamos para nos comunicar ou simplesmente deitar falação. Tiago escreve que, se nossos pecados não decorrerem da língua, seremos pessoas perfeitas, capazes de refrear todas as demais manifestações do corpo. “Quando pomos o freio na boca dos cavalos, para que nos obedeçam, governamos também todo o seu corpo”, exemplifica. Adiante diz que todos os seres da natureza são dominados pelo homem, “a língua, porém, nenhum homem a pode dominar”.

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Uma bica não lança água doce e salgada, uma figueira não dá figo e uva, mas, escreve Tiago, de uma mesma boca procedem a bênção e a maldição. Refleti sobre como geramos discórdias, desavenças, humilhações quando com silêncio conquistaríamos uma convivência de muito mais serenidade e amor. Perdemos a paciência de esperar uma argumentação completa, porque logo acionamos a língua para interromper. Perdemos o dom do silêncio, da escuta, lacramos os ouvidos e desprezamos inumeráveis oportunidades de aprender.

Um antigo ditado lembra que falar é prata, calar é ouro. Os dois são metais preciosos, porém o segundo vale mais do que o primeiro. Também aprendemos que Deus nos deu uma boca e dois ouvidos, recado para ouvir mais e falar menos. As redes sociais estão tomadas de falação, impedem que haja tempo de digerir, de refletir, de ouvir. Um livro, por exemplo, também fala conosco e, quanto mais o acolhermos em silêncio, mais se impregnará em nossa história pessoal e social, porque lhe damos tempo de se aproximar com o devido respeito e estabelecer o diálogo que nos permite crescer.

Acredito que meu melhor tempo de professor começou quando passei a falar menos e ouvir mais. Incentivava os alunos a ler e, depois, dar-lhes espaço de escrever, de falar, de criar, portanto assumindo sua própria voz e construindo colaborativamente o seu saber. Penso que uma das grandes carências do mundo de hoje seja ouvir, escutar. Não havendo tempo para a digestão, o corpo todo entra em falência.

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