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Felipe Kroth

Fora de pauta: se não for o vazio

Fora um bom cristão. Nunca fizera mal a ninguém e sentira-se culpado sempre que desejara o mal a alguém. Pedira perdão, com sincero arrependimento, e perdoara todos os que se arrependeram. Casara e mantivera a promessa que fizera a Deus, de ficar ao lado de sua mulher, agora sua viúva, até que a morte os separasse.

Saído da vida terrena, viu-se em um espaço que facilmente reconheceu como o prometido Paraíso. Campos verdejantes, cascatas de água límpida e grandes banquetes, de aromas maravilhosos, sempre servidos. Uma atmosfera extremamente tranquila. Uma nuvem de preocupação lhe passou pela cabeça, apenas, quando viu os demais residentes. O clima era de tristeza entre todos.

– O que é que há? – perguntou a um homem muito magro que estava sentado embaixo de uma árvore e direcionava um olhar vazio para o horizonte.
– Recém-chegado? – perguntou o homem.
– Sim.
– Bem-vindo! Estás no Céu.
– Sim. Percebi e isso muito me alegra. Por que estás aí, caído?
– Eu estou aqui há muito tempo.
– Sim, mas qual o problema?
 – Tu entenderias, em breve, mas explico-te: no Paraíso não há necessidades. Há comida à vontade e não há fome; há água fresca à vontade, mas não há sede, nem calor; pode-se ter qualquer desejo atendido, mas ninguém tem desejo de nada.

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O novo morador olhou ao redor e percebeu que sentia-se assim, pleno e plenamente satisfeito, não sentia necessidade de nada.

– Qualquer desejo pode ser atendido? – perguntou, enquanto olhava para a linda mesa do intocado banquete.
 – Qualquer um.
 – Posso desejar sentir fome?


Em outro momento, em outro tempo, outro homem viu-se em um local de atmosfera absolutamente intranquila. Com exceção do calor quase insuportável, se parecia muito com uma grande metrópole na “hora do rush” – carros e motos a toda, grandes edifícios e pelas calçadas muitos pedintes, batedores de carteira e assaltantes. Da janela de um prédio, um homem surrealmente obeso observava o movimento.

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– Novato? – um passante o abordou.
 – É… que lugar é esse?
 – O Inferno.
– É mais, digamos, habitável do que eu imaginei.
– É. Dizem que o Céu parece a pré-história. Mas não se engane com as aparências.
– O que há de tão ruim aqui?
– Necessidade. Tudo é necessário e urgente. Construímos o abrigo mais seguro, e o medo não passa. Bebemos tudo o que há para beber, e a sede não passa. Construímos o carro mais rápido de todos e ele ainda parece muito devagar. Não há satisfação. E o pior: pode-se comer de tudo, mas a fome nunca é saciada.

A simples citação da palavra “fome” fez o estômago do novo morador roncar. Ele percebeu que estava faminto como jamais estivera em vida.

– É possível que eu morra de fome? – perguntou.
– Claro que não! – respondeu o outro, com uma risada entre debochada e cruel.

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