Um dos principais críticos literários em atividade no Brasil, o jornalista e escritor carioca José Castello acaba de retornar às livrarias com novo romance. A temática dessa narrativa longa está apoiada em problemática de máxima atualidade: as perspectivas de manutenção da qualidade de vida na velhice, em época marcada por relações familiares e sociais fugazes. Devastação: drama cósmico começou a ser distribuído ao longo dessa semana, e é um lançamento da editora gaúcha Arquipélago.
É uma nova incursão pela ficção direcionada a público adulto do autor de Ribamar, romance de fundo autobiográfico, vencedor do Prêmio Jabuti de 2011. No currículo, Castello ostenta longa e profícua carreira no jornalismo literário, com contribuições fundamentais para a formação de várias gerações de leitores. Aos 74 anos, segue como referência para profissionais cujo propósito seja auxiliar na divulgação de autores e obras, nacionais ou estrangeiros.
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Castello é reconhecido como acurado resenhista ou ensaísta. Seus textos foram compartilhados em prestigiosos suplementos culturais de jornais como Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo, O Globo e Valor Econômico e de revistas como Veja, IstoÉ e Playboy, além do semanário Opinião e do jornal literário Rascunho, editado em Curitiba. Nesta cidade, radicou-se em 1994, e ali coordena uma oficina literária.
No ano anterior, lançara biografia até hoje de consulta obrigatória: Vinicius de Moraes: o poeta da paixão. Ao mesmo poeta dedicaria uma segunda obra, Vinicius de Moraes: uma geografia poética, em 1996, mesmo ano no qual chegaram às livrarias Na cobertura de Rubem Braga e João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma.
Afiguram-se como leitura essencial igualmente volumes nos quais reúne parcela de seus ensaios e de suas colunas, centrados em autores e obras de sua predileção. Em Inventário das sombras, de 1999 (reeditado em 2022), compartilha entrevistas com autores nacionais e estrangeiros, entre eles Clarice Lispector, Hilda Hilst, Nelson Rodrigues, José Cardoso Pires e Saramago.
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Em A literatura na poltrona, de 2007, concentra seu olhar em mais um time de autores, de Graciliano a Truman Capote, Ricardo Piglia, Kafka e Borges. Em 2012, foi a vez de As feridas de um leitor, nova reunião de textos críticos elaborados para jornais e revistas. E em 2013 lançou Sábados inquietos, agrupando cem dentre mais de 250 colunas que publicara desde 2007 no suplemento cultural “Prosa”, que circulava
no jornal O Globo.
Gazeta do Sul – O senhor acaba de lançar novo romance, Devastação, pela editora gaúcha Arquipélago. Quais as temáticas centrais dessa nova incursão pela ficção narrativa?
José Castello – Devastação tem como protagonista dona Anita Vogler, uma senhora doente e idosa, que vive sozinha em um velho apartamento de Copacabana, amparada apenas pela cuidadora, Marly, e pelo neto Artur. Sua relação com Marly – de quem depende por conta da lenta falência de seu corpo – é triste e tensa. O neto Artur, que mora com ela, passa os dias trancado em seu quarto, mergulhado na tela de um computador. O filho Antônio, um advogado em crise conjugal, é indiferente e raramente a visita. Empurra o destino de dona Anita para as mãos de um psiquiatra, dr. Ariosto, que não consegue escutá-la e se limita a dopá-la.
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Devastação é a história de um mundo em decomposição, um mundo que se fragmenta e que entra em colapso. Roubada da posse de si, dona Anita se perde nas imagens de um espelho de parede, que herdou da avó. Tanto Anita Vogler como seu neto Artur estão retidos em um universo no qual os limites explodiram, um mundo precário e agonizante, de grande instabilidade, no qual fronteiras destroçadas impedem qualquer separação entre e a realidade e suas imagens.
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A ação de Devastação se desenrola toda ela no quarto de dona Anita, durante quatro horas. Há uma tempestade, um eclipse solar, um cão esfaqueado. Pombos invadem sua cozinha, o teto de gesso do corredor despenca, a desagregação e a decadência a cercam, mas dona Anita, impotente, nada pode fazer a respeito. Ela está ilhada em sua própria dor, sozinha em sua terra devastada.
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É sua primeira obra por editora gaúcha, correto? Como se deu a proximidade, ao longo do tempo, com a cena literária gaúcha em geral? Como tem sido a interlocução com autores gaúchos?
Vivo muito isolado em Curitiba – uma cidade que, por si, inspira a introspecção e a solidão. Apesar de vivermos na mesma cidade, raramente vejo meus grandes amigos. Não tenho voltado tanto ao Rio de Janeiro e a Copacabana, onde nasci e me criei, quanto gostaria. A verdade é que raramente vou a Porto Alegre. Meu grande amigo gaúcho era o escritor João Gilberto Noll, que, infelizmente, já se foi e de quem sou um leitor e admirador quase fanático. Tenho um carinho especial por Cintia Moscovich, mas raramente nos vemos. Tenho grande carinho e respeito por Flávio Ilha, o biógrafo de Noll.
Devastação chega cerca de 15 anos após Ribamar, de 2010, que, por sinal, recebeu o Jabuti de melhor romance do ano.
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Por que esse hiato?
Não foi um hiato tão longo. Em 2015, publiquei a ficção infantojuvenil Dentro de mim ninguém entra, pela editora Berlendis, de São Paulo. O livro ganhou o Jabuti de melhor ficção infantojuventil em 2016. Mais recentemente, pela editora Record, publiquei uma nova edição de meu Inventário das sombras, que inclui um retrato inédito de Noll. Ao longo desse tempo, e por quase 20 anos, me dediquei – além do trabalho de rotina – a escrever um longo romance, O jardim das amoreiras, que chegou a ter mais de 600 páginas e agora tem pouco mais de 300 em sua versão final. Ele será publicado no fim do ano pela editora Iluminuras, de São Paulo. Escrevi ainda muitas crônicas para o mensário “Rascunho”, de Curitiba, e para o suplemento “Pernambuco”, do Recife. Uma seleção delas, Histórias miseráveis, organizada pelo escritor Rogério Pereira, sairá no segundo semestre pela editora curitibana Maralto.
O senhor possui uma já longa trajetória de crítica e de divulgação literária. Como avalia o cenário atual da literatura brasileira?
Fui, durante quase dez anos, colunista do suplemento “Prosa & Verso”, de O Globo, quando era editado por Manya Millen. Esse longo trabalho – que depois rendeu o livro Sábados inquietos (editora Leya, São Paulo, 2013) – deixou minha figura pública muito ligada à crítica literária. Nessa época, por obrigação profissional, eu era obrigado a acompanhar os lançamentos do mercado editorial. Mas, embora escrevesse semanalmente sobre eles, não me considero, e não sou, um crítico literário. Defino-me, em geral e de modo muito precário, como um “leitor sentimental”.
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Para mim, a leitura de um livro é uma viagem solitária, que fazemos sem armas nas mãos. E prefiro que seja assim, leve e livre. No “Prosa”, lido um livro, tudo o que eu fazia era escrever minhas “impressões de viagem” e nada mais. Vou dizer uma coisa horrível, mas verdadeira: não me sinto em condições de avaliar o cenário atual da literatura brasileira. A verdade é que não leio muito a ficção contemporânea, não só a brasileira. Recentemente, li com grande entusiasmo os novos livros de amigos muito queridos como Raimundo Carrero, Sidney Rocha, Cristóvão Tezza, Godofredo de Oliveira Neto e Itamar Vieira Junior.
Sou absolutamente obcecado pela obra do português Gonçalo Tavares – um autor que não paro de ler e reler. Mas, na maior parte do tempo, leio autores de outros séculos. Tenho lido e relido muito, nesse momento, os russos – Tolstoi, Tchekov, Turgueniev, Dostoievski, Maiakovsky, Gorki – que são, na verdade, minha grande paixão. No momento, leio assombrado a “Poesia” do Borges traduzida por Josely Viana Filho. Entre os brasileiros, o “clássico” a quem mais retorno é Graciliano, que nunca paro de reler. De modo que eu me sinto inteiramente incapaz de avaliar nossos contemporâneos – afirmação que só depõe contra mim, que me envergonha, mas é absolutamente verdadeira.
O senhor é autor de biografias e estudos sobre autores referenciais da literatura brasileira. Hoje, a quem mais o senhor dedicaria atenção ou com quem se ocuparia na literatura?
Embora seja autor de uma biografia de sucesso – O poeta da paixão, biografia de Vinicius de Moraes, Companhia das Letras, 1994 – não me considero mais um biógrafo, e não tenho mais interesse por biografias, nem como escritor, nem como leitor. Como autor, considero que o trabalho solitário do biógrafo, tal qual é praticado no Brasil, é absolutamente massacrante e impraticável. E por isso tiro meu chapéu para autores como Fernando Moraes e Ruy Castro, que, apesar de tudo, seguem firmes em seus caminhos.
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Conheço muito bem todos os frágeis limites e tudo o que faltou em minha biografia de Vinicius de Moraes. Trabalhei de forma insana durante mais de quatro anos. No último ano, mesmo com a preciosa ajuda de um grande amigo, o jornalista Silvio Barsetti, quase fui derrotado pelo livro, quase não o concluí. Meus livros sobre João Cabral e Rubem Braga não chegam a ser biografias, são apenas ensaios breves com um leve e despretensioso fundo biográfico. Meu Inventário das sombras é uma coleção de retratos – e retratos são bem mais sensatos que biografias, porque conhecem muito bem seus limites e seu pequeno tamanho.
O senhor acompanha a cena artística e cultural a partir de Curitiba, cidade na qual se radicou. Como está o ambiente literário nessa capital?
Os escritores curitibanos são herdeiros legítimos de Dalton Trevisan: trafegam pelas sombras, esquivam-se pelos cantos, fecham-se. Pensando melhor: talvez todos os escritores, no fundo, sejam assim e a literatura lhes pede exatamente isso: introspecção, solidão, recolhimento, exílio. Sem isso, não conseguiriam escrever. O grande escritor vivo de Curitiba, o romancista Cristóvão Tezza, leva uma vida pacata, em torno de sua família e de sua pequena rotina. Penso que em Curitiba não existe mais, se é que algum dia existiu, a tal “vida literária”. Recentemente, veio morar na cidade outro grande escritor, o diplomata João Almino, imortal da ABL. Estou sempre para vê-lo, mas nunca o vejo, algo nos afasta. A culpa certamente é minha.
A verdade é que eu me sinto sempre em dívida com meus colegas escritores, pois também me transformei em um ser introspectivo e solitário. Sou talvez o pior deles. Fomos todos mordidos pela mosca de Dalton Trevisan. Temos na cidade estupendos escritores mais jovens – Luis Henrique Pellanda e Rogério Pereira, ambos nascidos nos anos 1970, são, certamente, os mais brilhantes dentre eles. São amigos muito queridos, que me honram com sua contínua atenção e cuidado, mas a verdade também é que raramente nos vemos.
Dos poetas, então, nem se fala. Raramente vejo o poeta Fábio Santiago, de quem sou muito próximo e com quem converso sempre por WhatsApp – como se ele estivesse em Dallas e eu na China. O mesmo posso dizer a respeito da poeta e querida amiga Jussara Salazar. O ambiente literário em Curitiba é esquivo, nevoento, solitário – mas está cheio de mentes brilhantes.
A partir da longa vivência no jornalismo voltado ao contexto artístico e cultural, como avalia os veículos na atualidade na cobertura a esses temas?
O jornalismo literário de hoje está dominado pela fragmentação e dispersão. Em Curitiba, ainda temos a sorte de ter o mensário “Rascunho”, do qual sou colunista e que na verdade é hoje um suplemento de projeção nacional. Ele é fruto, porém, do esforço solitário e heróico do escritor Rogério Pereira – que, na maior parte do tempo, abdica de escrever sua linda e forte obra de ficção para se dedicar ao jornal.
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Sou ainda, com honra e alegria, colunista do suplemento “Pernambuco”, do Recife, que, no entanto, não se dedica só à literatura, mas à cultura em geral. Os suplementos literários dos grandes jornais minguaram, quando não – em maioria – desapareceram. Existem belos esforços isolados para manter a literatura viva – como a revista “Quatro Cinco Um”, de Paulo Werneck, em São Paulo. Mas são exceções.
No centro da cena da imprensa literária, a triste verdade é essa, há um grande vazio. Há um rombo. Só muito raramente acompanho as postagens sobre literatura feitas nas redes sociais. Afora o esforço abnegado de figuras como o escritor Sidney Rocha, que está sempre presente no Instagram com sua mente fértil e ideias brilhantes, parece-me que, na internet, embora apareça aqui e ali, a literatura é sempre tragada pelo grande tsunami das imagens e muito raramente encontra seu lugar.
Somando tudo isso, e afora lutas isoladas e bastante sangrentas, habitamos hoje um grande deserto. A literatura só interessa quando vende muito, e ela raramente vende muito. Em um mundo dominado pelo desejo do lucro imediato, pelo acúmulo de seguidores e “monetização” das informações, à literatura hoje – como talvez desde sempre – resta a margem. É nela, agarrados a ela, que os escritores continuam a escrever.
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Um trecho de Devastação: drama cósmico
Agora vejo com clareza: há uma mulher dentro do espelho. Ela, a inominada, me encara. Veste uma camisola igual à minha, tem cabelos brancos como os meus e também está em uma cadeira de rodas. Eu a encaro, e ela me encara. Por que me imita? Aonde ela quer chegar com esse jogo infantil? Acho que a maldita debocha de mim, só pode ser isso. Faço cara feia, ela faz também. Abro bem os olhos na esperança de assustá-la, ela abre os seus. Essa mulher não é fácil. Cansada, me viro para Marly e pergunto o que aquela mulher faz dentro de meu espelho. “Essa mulher é a senhora, dona Anita”, ela me diz, muito calma. Pode ser. Mas, se eu acreditar nisso, sou obrigada a concluir que estou mais enrugada, que meus cabelos estão mais ralos, que minhas olheiras aumentaram. E que me tornei uma mulher corcunda. Serei eu mesma?
As cortinas da janela começam a balançar, parece que vem chuva forte. “Parece que é uma tempestade”, Marly diz. Trovões espocam ao longe, confirmando suas palavras. Indiferente a elas, mantenho os olhos fixos na mulher do espelho, na esperança de que diferenças se revelem e elas a desmascarem. “Quem é afinal essa mulher que me encara, Marly?”