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Lançamento

Livro de autora gaúcha retrata a difícil missão de ser filha

A gaúcha Manoela Sawitzki, radicada no Rio de Janeiro, retorna às livrarias com o romance Filha, pela Companhia das Letras

Um acerto de contas com o passado está na base do enredo do novo livro da escritora gaúcha Manoela Sawitzki, 47 anos, radicada no Rio de Janeiro. Filha, romance lançado pela Companhia das Letras, é um contundente exercício de confrontação com a memória familiar, e que, a par de sua concisão, em 121 páginas, mexerá com o leitor, em condições de deixá-lo comovido.

A forma como Manoela estrutura a narrativa, bem como o tom que adota, sob o ponto de vista da narradora já adulta (que se apresenta como Manu), faz lembrar da obra da Nobel francesa Annie Ernaux. A personagem não se furta a mexer em temas que em muitos casos acabam sendo varridos para debaixo do tapete. Manoela lida com questões de forte carga emocional, e mais uma vez a literatura é espaço para explicitar um trauma, a fim de, ao enunciá-lo, conduzir à superação.

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A história narrada é a de uma família estabelecida em pequena cidade do noroeste do Rio Grande do Sul, nomeada apenas pela inicial S. Ali, um proprietário de uma loja de artigos gaúchos desdobra-se entre cuidar do negócio e, em paralelo, tratar com mão de ferro a mulher e os filhos. Destes, Manu é a mais nova e, portanto, cresce sendo testemunha da maneira como o pai lida com os demais irmãos, meninos e meninas, entre surras e agressões. Não demorará e será a vez de ela própria ser submetida a tal tratamento.

Entre o medo, o rancor e a rebeldia, a menina cresce em meio a essa masculinidade tóxica. Chega a um ponto em que tudo o que quer é fugir, ir embora. Que é o que se dará, quando, adolescente, seguirá para Porto Alegre, a fim de continuar os estudos. Só quando já está longe, quando se desviou da ameaça, e quando o pai é acometido de um infarto, este muda a forma como trata os filhos. E é então que a filha mais nova começa a reelaborar sua relação com aquele que até essa altura da vida só lhe inspirara ódio e pavor. Será chegado o momento de lidar, de forma franca e adulta, com o passado.

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FILHA, de Manoela Sawitzki. São Paulo: Companhia das Letras, 2025. 140 páginas. R$ 69,90.

O ingresso na vida adulta

Um dos principais nomes da nova geração de escritoras brasileiras, Manoela Sawitzki foi também modelo e é dramaturga, sendo doutora em literatura, cultura e contemporaneidade pela PUC-Rio. Sua estreia na literatura aconteceu em 2002, com o romance Nuvens de Magalhães, lançado pela Mercado Aberto, e que teve acolhida favorável da crítica e dos leitores.

Sua narrativa seguinte foi Suíte dama da noite, publicada em 2009, dessa vez pela Record. Por fim, com Vinco, em 2022, ela chegou ao catálogo da Companhia das Letras, que agora lança o novo romance. A exemplo de Filha, Vinco tem como protagonista uma jovem chamada Manu, que lida com o desafio de sair da adolescência, a um passo de ingressar na vida adulta.

Filha é estruturado em duas partes. A primeira, “Construção”, descreve a rotina em família, em um contexto no qual a pequena (depois adolescente) Manu sonha com o dia em que poderá se libertar de um cotidiano com medo constante, e que a sufoca. Assim chega o dia longamente acalentado em que enfim deixará a cidade de S. para se fixar na capital gaúcha, onde ingressará no ensino superior.

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Na segunda parte, “A morte do pai”, passa a reavaliar a relação com o pai e os demais familiares já afastada deles. Nesse cenário, o romance revela amplitude que o firma em nicho da literatura de inegável apelo universal.

“É um livro que nasceu do luto”

O novo romance de Manoela Sawitzki, Filha, coloca em pauta, no âmbito da arte, temáticas de máxima atualidade na sociedade contemporânea, e que podem ser compreendidas como universais. Tem-se como realidade um município do interior do Rio Grande do Sul que lida com comportamentos e reações culturais fortemente apoiadas sobre um legado patriarcal, no qual a figura dominante é a do homem, cujas decisões, em família, não admitiam contestação, nem dos filhos homens e muito menos das mulheres (esposa ou filhas).

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A personagem Manu, a narradora, sendo a filha mais nova, cresce testemunhando os irmãos e as irmãs maiores sofrendo com os rigores do tratamento dispensado pelo pai, autoritário e rotineiramente alterado pelo álcool. A mãe igualmente vive em um cotidiano de agressões e submissão. A cidadezinha na qual a família mora situa-se na região missioneira gaúcha, e Manu ainda sente o preconceito decorrente da exposição pública que o comportamento e as atitudes do pai provocam perante a comunidade.

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Essa rotina alimenta um forte sentimento de revolta, mas também conduz para uma tomada de consciência. Os irmãos e as irmãs mais velhas buscam as alternativas de fuga ao ambiente opressivo, e a filha mais jovem, sensível, mas de personalidade forte, protagoniza a reação feminina (de mulher e de filha), o que implica em romper com o quadro de opressão ou de agressão, e enfrentá-lo. Mais do que isso, ergue-se um brado por respeito, por tratamento justo e igualitário, mas também por afeto, por carinho, por amor.

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A obra de Manoela, ao tratar de tema tão sensível, abre janelas para a vitória não do rancor e da mágoa, e sim da superação, em nome de uma vida com mais serenidade. Em entrevista à Gazeta do Sul, por e-mail, a autora mencionou sua opção por sinalizar para as diferentes “versões” dos personagens, como de fato também ocorre na vida real.

O pai da personagem Manu, por exemplo, diz ter a sua versão e entende que a suposta “verdade” é a que ele estaria guardando, ainda que nunca seja claramente enunciada. “O livro fala que toda história tem ou pode ter diferentes versões, dependendo de quem a narra”, salienta. “A arte materializa e amplifica essas versões, espelha essa pluralidade.”

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Entrevista

Manoela Sawitzki
Escritora

  • A relação com o pai é o tema de teu mais recente romance. Classificas essa obra como autoficção? O que te impeliu à escrita desse livro?
    Sim, é um livro de autoficção, quer dizer, tem uma base real que é extrapolada em literatura. O que me levou a esse livro foi a perda do meu pai, que morreu de um câncer fulminante em 2011. Foi um livro que nasceu do luto.
  • É uma obra com forte carga emocional, a partir do medo que a figura do pai provoca. Como foi lidar com a constatação de que, a certa altura, surge a palavra “amor” em relação a quem, até então, só inspirava raiva ou ódio?
    A relação entre o ódio e o amor é o grande conflito da personagem-narradora. Mas o amor surge como resposta a um anseio que está apresentado logo no começo do livro: o anseio por mudança. A personagem, ainda menina, quer, precisa que o pai mude. A questão é que, a certa altura da vida, ele de fato muda. O amor da personagem é uma resposta ao amor do pai, que enfim se manifesta. Mas, claro, esse não é um amor sem manchas, é um amor que oscila, que vacila, que hesita também.
  • A relação entre pais e filhos já inspirou muitas obras na literatura (pode-se citar Kafka). Tinhas esses intertextos como referência ou a intenção foi contar essa história da tua maneira, porque era uma vivência única?
    A Carta ao pai, do Kafka, é, claro, uma referência incontornável para qualquer um que pense em escrever sobre conflitos entre filhos e seus pais. É um livro que li cedo na vida e foi muito importante no meu caminho. Mais recentemente também havia lido A morte do pai, do Karl Ove Knausgård, com muito interesse, porque já havia escrito a primeira versão de Filha e queria saber se haveria pontos de contato. Mas só fui realmente pesquisar e ler com mais atenção uma bibliografia focada sobretudo nessas relações depois que o livro estava prestes a ser publicado. Foi uma experiência interessante, como criar uma família expandida, com muitos pais e irmãos.
  • Em sociedade, que papel entendes que Filha pode exercer, a fim de estabelecer um alerta? Era uma intenção tua alertar, ou querias tão somente contar uma história? O que Filha significa pra ti?
    Filha significa dar voz a um período importante da vida de uma mulher, o da passagem da infância para a idade adulta. Eu queria entender melhor como se dá a construção de uma mulher que cresceu num ambiente dominado pela masculinidade, que marcas psíquicas, emocionais, corporais ficam dessa passagem. E também significa se entender com a dimensão da perda.
  • Em Filha, a personagem deixa cidade da região missioneira do Rio Grande do Sul, citada somente como S. O que esse ambiente do interior gaúcho tem de determinante para a história que narras?
    O interior gaúcho que conheci de perto, do final dos anos 1970 ao começo dos anos 1990, era um lugar dominado pelo machismo, onde meninas e mulheres aprendiam a viver conforme as expectativas e normas ditadas por meninos e homens. Não era um bom lugar para alguém se tornar mulher.
  • Como é tua rotina profissional ou de dedicação à escrita?
    Eu escrevo profissionalmente livros, não necessariamente autorais — já trabalhei numa não ficção escrita em colaboração sobre o crime ambiental na Amazônia, e estou escrevendo outro livro que passa pelo mesmo tema —, também escrevo roteiros e presto serviço para editoras.
  • E como é a tua relação atualmente com o Rio Grande do Sul?
    Infelizmente tenho ido pouco ao Rio Grande do Sul, mas, quando vou, fico em Porto Alegre, uma cidade onde morei por 12 anos e onde vivi muitas coisas boas.
  • Integras a nova geração da literatura brasileira, marcada pelo protagonismo de muitas mulheres escrevendo e publicando, inclusive muitas gaúchas. Como vês esse momento atual, e como interages com essa turma?
    Sim, como nunca, há mulheres escrevendo, publicando e sendo ouvidas como autoras. Só posso ver esse momento com alegria. Durante muito tempo a literatura foi terreno dos homens, a palavra esteve com os homens. As mulheres eram exceções ou apenas objetos. Enfim, o ponto de vista da mulher, o mundo visto da perspectiva de uma mulher, pelo menos em relação ao volume extraordinário dessa produção que temos hoje, é algo novo. Há muitas excelentes escritoras brasileiras com quem tenho menor ou maior contato, como Andrea del Fuego, Natalia Timerman, Julia Wähman, Tatiana Salem Levy, Carol Bensimon, Natália Borges Polesso, Ana Maria Gonçalves. O País está pulsando.
  • Quem são tuas principais referências ou influências na carreira, e quem mais tens lido na atualidade?
    A Clarice Lispector foi seminal no final da minha adolescência e começo da vida adulta. Devo muitas coisas a ela, principalmente o amor pelo mistério da escrita. Virginia Woolf veio depois e mudou minha vida mais uma vez. Mais recentemente, na última década, conheci a Toni Morrison e o James Baldwin, que se tornaram duas referências importantes do quão longe a literatura pode chegar, humanamente, no sentido de revelar o ser humano, e como arte, quero dizer, exercício de linguagem.

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