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Ricardo Düren

Rescaldos da enxurrada

Posso dizer que já passei por vários momentos tensos na vida, daqueles que ficam gravados na memória. Quando era repórter policial, por exemplo, acompanhei perseguições e até alguns tiroteios – sem colete e desarmado. Houve também uma ocasião, durante um passeio em Rio Grande com a Patrícia e as crianças, em que fomos surpreendidos por uma tempestade repentina à beira-mar. Estávamos em um ponto isolado da Praia do Cassino – uma das mais extensas do mundo – e foi um sufoco retornar à civilização abaixo de uma chuva que vencia os limpadores do para-brisa, rodando sobre a areia encharcada e mergulhando o automóvel em córregos que, pela força das águas, simplesmente brotaram no caminho da orla.

E não há como não mencionar o nascimento dos nossos filhos, quatro momentos marcados por um misto de nervosismo, ansiedade e, por fim, indescritível alegria.

A esta coleção de momentos tensos, alguns tristes, outros felizes, acrescento a enxurrada da quinta-feira retrasada. A sensação de ver a água avançando rápido da rua para o pátio, na iminência de invadir a casa, sem proporcionar qualquer chance de reação, é angustiante. Não, não pense o leitor que irei me queixar – na verdade, tenho muito a agradecer, pois a enchente manteve-se fora de casa por questão de meio centímetro. O que pretendo, na coluna de hoje, é me solidarizar com quem não teve a mesma sorte.

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O que nos salvou de ter a casa invadida pela água foi a geografia do terreno, com um quintal abaixo do nível da rua e da própria moradia. Quando a rua alagou – algo que nunca havia acontecido por aqui – a água começou a descer rápido por uma rampa que dá acesso ao quiosque, localizado aos fundos, logo se esparramando pelo quintal e avançando sobre a cerca, rumo a uma área verde que faz divisa com nosso pátio. A cena parecia a de uma barragem rompida. Foi como se, repentinamente, um rio tivesse brotado ao lado de casa, com perigosa correnteza, arrastando tudo o que havia pela frente – inclusive o pesado portão de acesso do carro. Em questão de minutos, o quintal estava sob um metro de água.

Simplesmente não havia o que fazer, além de assistir à fúria da natureza e balbuciar algumas preces.

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– Será que a água vai subir mais, pai? Vai chegar aqui dentro? – perguntavamme as crianças, a todo momento.

– Não, já vai baixar – respondia, sem muita convicção, diante da chuva que não parava de cair.

Como se não bastasse toda a tensão, no meio do corre-corre para assistir àquelas cenas entre uma janela e outra, a caçula, Ágatha, escorregou no piso úmido e caiu um tombão, aterrissando ao solo em um horrendo espacate. Já nervoso, ralhei com ela e mandei que ficasse parada em um mesmo lugar. O que a deixou ainda mais brava:

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– Só pra avisar – grunhiu a caçula. – Doeu!

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Minha esposa estava visitando a mãe dela na hora da enxurrada e voltou para casa com água pela cintura. No caminho, presenciou cenas de dor e aflição – carros submersos, uma mãe abandonando uma casa alagada, trazendo consigo um bebê no colo, uma família inteira aos prantos enquanto a água arrasava os móveis. Em todo o nosso bairro, e também na nossa rua, teve gente calculando prejuízos no dia seguinte. Felizmente, ninguém se feriu.

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Aqui em casa, os danos ficaram restritos ao portão, que se dobrou sobre o próprio motor, e ao quiosque, coberto por uma grossa camada de barro, difícil de limpar – o que nos deu ideia da aflição de quem teve sala, cozinha e quartos cobertos por essa lama.

A estes vai meu sentimento de solidariedade e também uma reflexão que vem me acompanhando nos últimos dias: de certa forma, um temporal como aquele resume o que é nossa vida – um contínuo conquistar, perder e reconquistar. Sei que isso pode soar hipócrita, vindo de quem teve apenas um portão danificado e um quintal alagado – além de um grande susto. Mas, diante de tudo o que já vi, ouvi, li e aprendi, penso que o ciclo da nossa existência, como seres humanos, é esse: batalhamos, insistimos, ganhamos e, muitas e muitas vezes, perdemos. Perdemos por descuidos, por momentos de bobeira, por força da natureza e, historicamente, até por conflitos. A cada perda, sofremos e choramos, mas então levantamos a cabeça e batalhamos novamente.

Já dizia o samba de Paulo Vanzolini, este sim um grande sábio:

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Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá a volta por cima.

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Claro que, em momentos como esse, a solidariedade é imprescindível, principalmente para quem já vivia em situação precária. Muita gente que escapou apenas com a roupa do corpo – completamente encharcada – precisará de ajuda para recomeçar e, mesmo, para garantir a sobrevivência da família. Portanto, para aqueles que, como eu, tiveram sorte naquele e em outros temporais, gostaria de deixar um apelo: ainda dá tempo de auxiliar a quem precisa. A solidariedade é, também, parte do ciclo da vida. É, também, o que faz de nós seres humanos.

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