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Transnístria; leia sobre um país invisível, e no entanto formidável

Bélico: um memorial exalta a luta pela independência, bem como várias batalhas russas

Parti cedo de Chisinau, Moldávia, na companhia do experiente e versado guia Corneliu. A neve acumulada e a temperatura de 12 graus negativos não esfriaram os ânimos para conhecer o lugar que muitos consideram um museu soviético vivo. O destino era Tiraspol, capital da Transnístria, país que se autodeclarou independente em 2 de setembro de 1990.

A estreita faixa entre a Moldávia e a Ucrânia é lar para cerca de 450 mil habitantes. O povo, de origem majoritariamente eslava, é resultado da russificação da população desta parte da antiga Bessarábia, promovida pelo Império Russo e pela União Soviética. As famílias de russos étnicos enviadas ao território jamais se identificaram com as raízes romenas da região e um referendo de 2006 teve 97% dos votos a favor da autonomia da república que, para a ONU, é parte da Moldávia.

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O nome Transnístria ou, em russo, Pridniestrovski, significa “além do Nistro (Dniester)”, rio que delimita a fronteira ocidental do país. Antes de atravessar o impetuoso rio, passamos por barreiras dos exércitos moldavo e russo. Finalmente, cheguei nos agentes de imigração do curioso país. Em vez do carimbo no passaporte, recebi um comprovante de entrada separadamente, situação que eu já havia vivido, por exemplo, em Israel. Um grande brasão com a foice e o martelo indica a entrada no país que, oficialmente, não existe.

A primeira parada foi na cidade de Bender, única porção do território na margem ocidental do Nistro conquistada pelos separatistas na guerra de independência de 1992. De pronto, me senti de volta ao antigo leste europeu e a seus estados vassalos da URSS. A frota carcomida de Ladas e Volgas; os típicos mercados de carnes, laticínios, frutas e verduras; os prédios residenciais da era Nikita Khrushchov; os antigos ônibus eletrificados, que tive a alegria de usar novamente; e os monumentos ufanistas do realismo soviético me levaram a um ambiente que não é mais possível encontrar nem mesmo no país de Putin. Em Bender, visitei a Fortaleza Tighina e passei por ruas tranquilas, sem deixar de observar os buracos de bala nos prédios, que lembram que a região foi palco recente de violentos conflitos.

Na capital Tiraspol, tentei na medida do possível usar meu enferrujado russo, conversando com atendentes das variadas livrarias, restaurantes e no cinema-teatro local. Em geral, são senhoras que, embora atenciosas e prestativas, oferecem poucos sorrisos, no velho estilo do serviço público soviético. Foi como retornar ao ambiente que vivi em Moscou no início dos anos 1990. Fiz as refeições em restaurantes populares, onde a comida é caseira e muito barata. Caminhar pelas ruas Lenin, 25 de Outubro, Karl Marx, Iuri Gagarin e, principalmente, observar as pessoas e os costumes comprovam que o lugar é mesmo uma amostra fiel do finado mundo soviético.

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No centro de Tiraspol, destaca-se a estátua do comandante russo Alexander Suvorov, herói nacional que venceu a batalha contra os otomanos em 1792, considerado o ano de fundação do país. Além da bandeira da Transnístria, tremulam ali a da Rússia e as de três países igualmente não reconhecidos pela ONU: Abecásia, Ossétia do Sul e Nagorno-Karabakh, em uma espécie de clube dos excluídos que reconhecem um ao outro.

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Em frente ao monumento, o Parque Catarina II homenageia a imperatriz russa que conquistou a região e autorizou a construção da cidade, em 1792. Catarina, que depôs o marido Pedro III para assumir o trono, era notória admiradora da cultura grega, daí o nome Tiraspol – na língua helênica, o Rio Nistro se chama Tiras e polis é cidade. Sevastopol, Mariupol e Melitopol, na Ucrânia, também foram fundadas no mesmo período. Séculos antes de Cristo, gregos já haviam colonizado o entorno do Mar Negro, deixando marcas culturais por dois milênios.

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A Transnístria não foi o primeiro país teoricamente inexistente em que estive (Chipre do Norte, Palestina e Taiwan são outros exemplos), mas foi, possivelmente, o mais interessante. Saí com uma sensação ambígua. De um lado, o desejo de que o povo seja feliz da forma que escolheu, apesar (ou por causa) de sua simplicidade. De outro, impressionado por me sentir em uma espécie de exclave da Rússia e de seu passado histórico. Todos os governos de países ocidentais recomendam não visitar a Transnístria. De minha parte, como único forasteiro que vi por lá, agradeço pela recomendação, que ajuda a manter o surpreendente país sem turistas e praticamente intacto.

Rússia, Moldávia e Transnístria: uma paz simbiótica e frágil

Embora não reconheça formalmente a nação, a Rússia mantém um regimento de seu exército na Transnístria, além de subsidiar produtos e matérias-primas, como o gás natural. Os russos, obviamente, usam a oportunidade para aumentar sua área de influência e manter a posição estratégica a sudoeste da Ucrânia. Quanto à Moldávia, a relação amistosa com a Transnístria se deve principalmente ao fornecimento de energia. Mais de 70% da eletricidade da Moldávia é gerada nas usinas termoelétricas a leste do Rio Nistro.

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Apesar de uma certa temeridade com o ambiente militarizado de fronteiras, não percebi hostilidade alguma. Antes de retornar à Chisinau, fomos até a divisa com a Ucrânia. Não havia movimentação militar, mas há trincheiras escavadas ao longo da linha entre os dois países, com o objetivo de evitar a fuga de cidadãos ucranianos de seu país desde a recente invasão russa da Ucrânia.

Dezenas de estátuas de Vladimir Lenin estão espalhadas pelo país, uma delas em frente à sede do legislativo e executivo. Além disso, a Transnístria é o único país do mundo com a foice e o martelo em sua bandeira. O país, contudo, passa longe de ser comunista. De fato, o Partido Comunista local é de oposição e o próprio Lenin teria um acesso de fúria se visse o domínio selvagem da iniciativa privada, em particular pelo poderoso Grupo Xerife.

Onde quem manda é o Xerife

Uma das primeiras coisas que fiz ao chegar no país foi me dirigir a uma pequena casa de câmbio de um dos centros comerciais Xerife, onde troquei alguns euros pela moeda circulante, o rublo transnístrio. Em um país no qual não se usam cartões bancários, o dinheiro local em espécie é a única forma de pagamento oficialmente aceita. Logo notei que a marca Xerife estava em postos de combustíveis, hotéis, supermercados, provedor de internet e celulares, canais de televisão, revendas de veículos, renomados conhaques, indústrias e até no maior clube de futebol local, que possui uma moderna arena e um imponente complexo esportivo. Entrou para a história a ocasião em que, em 2021, o Sheriff Tiraspol derrotou, pela Liga dos Campeões da UEFA, a equipe do Real Madrid, dos “galáticos” Ancelotti, Benzema e Vini Jr.

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O Grupo Xerife é quase um monopólio, dominando dois terços da economia privada local. O proprietário da Sheriff Enterprises é o ex-agente da KGB Viktor Gushan, cujo apelido “Xerife” vem desde os tempos da agência de segurança e inteligência soviética. A corporação tem forte influência na política local e existem denúncias sobre seus métodos de ação e persuasão, nem sempre convencionais. Muitos oponentes do atual presidente Vadim Krasnoselsky, aliado do Xerife e de Moscou, desapareceram ou morreram misteriosamente nos últimos anos.

No lado positivo, uma das principais fontes de renda do país após a independência, o tráfico de armas e de mulheres, foi eliminado ou diminuiu sensivelmente. A finada URSS deixou um arsenal de mais de 40 mil armamentos na região e até mesmo um quilograma de Urânio 235 chegou a ser interceptado a caminho do Mar Negro. A comercialização ilegal de aparato bélico foi tema do filme O Senhor das Armas (Lord of War, 2005), com Nicolas Cage, inspirado em Viktor Bout, um poderoso traficante de armas soviéticas provenientes da Transnístria.

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