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Uniãozinho: 100 anos de um símbolo de resistência

Foto: Alencar da Rosa

Apenas 45 anos haviam se passado desde a abolição da escravatura no Brasil quando, em 1º de julho de 1923, um grupo de amigos resolveu criar um clube para proporcionar à comunidade negra um espaço para diversão e fomento das raízes afro-brasileiras por meio de atividades culturais, recreativas e esportivas. Nascido da atitude de descendentes de escravos, a criação de um clube social negro foi também uma forma de resistir no início do século 20, época em que um apartheid social afastava negros de outros lugares de convivência.

Foi há exatamente um século que João Antônio Lopes, Olmiro Bastos, José Garibaldi Filho, Francelino Garibaldi, Agenor Garibaldi e Manuel Flores fundaram o Esporte Clube União, hoje chamado de Sociedade Cultural e Beneficente (SCB) União, popularmente conhecida como Uniãozinho. Esses são os nomes que constam nas atas, mas acredita-se que havia mais fundadores. O clube, mesmo após 100 anos, traz na essência a palavra resistência, fundamental para a sobrevivência do União até os dias de hoje.

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Eternizado na história de Santa Cruz

O Esporte Clube União teveorigem no futebol, em 1923, sendo fruto de dois clubes: o Rio Branco e o 15 de Novembro. De acordo com a atual presidente, Marta Regina dos Santos Nunes, de 52 anos, os clubes sociais negros foram fundados no processo de luta abolicionista. No pós-abolição, até meados de 1930, tinham como principal finalidade a organização social da comunidade negra, que não tinha espaço para se integrar politicamente ou socialmente. 

“Ao todo, a gente teve documentados pelo menos cinco clubes sociais negros em Santa Cruz do Sul, fora outros dois surgidos antes do União. Ou seja, um total de sete clubes sociais negros em um espaço que se caracteriza como ‘de colonização alemã’. A maioria das famílias que os fundaram, inclusive do União, eram famílias daqui, que foram escravizadas ou descendentes. Antes do processo de imigração alemã, provavelmente elas já estavam aqui”, enfatiza.

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As famílias da presidente e de tantos outros sócios da SCB União participaram do processo de fundação. Antigas atas, datadas da década de 1920, contudo, sofreram com a deterioração e, apesar de se saber o nome de alguns dos fundadores, podem existir outros que participaram da criação. O Museu Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, recebeu esses documentos para fazer a guarda dos materiais. Se forem restaurados, quem sabe se descubra quais outras famílias estiveram envolvidas no início de tudo.

Projetos sociais e biblioteca

Os projetos sociais são um dos pontos fortes da Sociedade União. O de percussão, por exemplo, parou na pandemia, mas deve ser retomado. Contudo, para isso, são necessários recursos para manter gastos com alimentação e transporte de crianças e adolescentes. A iniciativa começou em 2008; então, agora, os professores serão ex-alunos, o que é bastante especial para o Uniãozinho. 

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Além disso, R$ 10 mil foram investidos na compra de livros para a instalação de uma biblioteca temática no clube. São variados livros de autores negros ou com temas sobre racismo, empoderamento feminino, cultura indígena, identidade de gênero, entre outros. Mas para colocar a biblioteca em funcionamento também são necessários recursos, principalmente para pagar alguém que possa ficar em um horário fixo e atender quem chegar para retirar os títulos. 

No âmbito do edital FAC 07/2021, uma atividade é realizada junto às escolas da CRE. São formações com professores em Educação das Relações Étnico-Raciais (Erer), que tratam de temas pertinentes à luta antirracista e para pensar uma educação inclusiva.

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É um “quilombo urbano”

Há uma expressão que membros da SCB União gostam de utilizar, que se refere ao pertencimento e à identidade. “Quilombo urbano” é como alguns integrantes chamam aquele prédio, com fachada azul, na Rua Júlio de Castilhos, número 1.585, na área central de Santa Cruz do Sul. “Existe hoje em dia uma leitura diferente de espaços como o União, que são lidos como quilombos urbanos. Eu, particularmente, gosto de usar essa expressão, no sentido de congregação, lugar de memória, lugar de valorização”, frisa Marta.

O secretário e diretor de Patrimônio da Sociedade União, Fábio Ricardo dos Santos Nunes, diz que a palavra “quilombo” permaneceu a mesma, mas o sentido mudou. “Antes havia uma necessidade de os escravizados se reunirem para que juntos fossem mais fortes, para poderem resistir. Hoje, a expressão de quilombo urbano tem outros valores, outros sentidos, mas, de certa forma, é um quilombo.” 

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Na época da construção da sede, nos anos 1950, o entorno era povoado por famílias negras. “Minha avó morava para cá e eram só famílias negras. Existe um processo chamado de gentrificação, que consiste em pegar espaços que não têm valor social ou econômico e transformá-los. É oferecido um valor e as pessoas vão embora. O União não é a história só dessas famílias, mas de Santa Cruz também. Há uma distância grande entre o que é a história da cidade e o que as pessoas conhecem sobre a história da cidade”, explica Marta.

Em busca de origens

A SCB União foi aprovada no edital Fundo de Arte e Cultura (FAC) 07/2021, que abrange atividades em parceria com a 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), exposição fotográfica alusiva aos 100 anos e que deve acontecer até setembro, e uma pesquisa com a historiadora e doutoranda em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Franciele Rocha de Oliveira.

Essa etapa consiste em trazer à luz a história dos clubes sociais negros e, consequentemente, dos homens e mulheres que os constituíram. “Essa historiadora está fazendo a reconstituição das famílias fundadoras e construindo árvores genealógicas. Está sendo bem legal, porque a gente consegue olhar para essa população que existia e foi invisibilizada”, menciona a presidente do Uniãozinho, Marta Nunes.

Franciele afirma que a pesquisa é fundamental para compreender uma outra história social do Rio Grande do Sul. Esta perpassa não só as histórias de escravidão, mas sobretudo as lutas por liberdade, direitos e cidadania travadas no pós-abolição pelas comunidades negras, em projetos individuais, coletivos e familiares. 

Conforme a historiadora, territórios que receberam imigrantes ítalo-germânicos, como é o caso de Santa Cruz, construíram uma imagem centrada na atuação desses imigrantes, associados à história do trabalho e, consequentemente, ao progresso desses territórios. “Entretanto, clubes como a Sociedade União tensionam esta história única, demonstrando a existência de trabalhadores negros e negras que há 100 anos uniram-se na criação de um clube social em que pudessem realizar suas sociabilidades, festas e atividades culturais, sociais, esportivas e políticas em segurança.”

Quando recém-fundado, conforme a pesquisadora, o União era um lugar para que os integrantes pudessem reafirmar suas identidades, positivar suas imagens, constituir, além de garantir a integridade física e psicológica de seus membros. “O Rio Grande do Sul é um dos estados que mais despontam no número de clubes sociais negros do País. Santa Cruz, com a Sociedade União, faz parte desse contexto”, salienta Franciele.

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A historiadora já resgatou casos que mostram que o racismo, incrustado ainda hoje na população brasileira, se fez presente na vida dos fundadores. E isso resultou, inclusive, em uma vítima. “Marcados pelo racismo estrutural, temos documentado histórias que apontam violências extremas sofridas por essas pessoas. Um exemplo é a história do presidente José Francisco Ferreira, neto de ex-escravizados, tio-avô da atual presidenta, Marta Nunes. Ele foi assassinado em 1948, aos 34 anos, segundo a afilhada, dona Vilma Nunes, porque brancos não aceitavam negros em posição superior.”

Na busca pelas origens da comunidade negra que formou a SCB União, Franciele descreve que, ao entrevistar as famílias ligadas aos fundadores, volta e meia tem se deparado com relatos que reafirmam a importância de territórios como o dos clubes sociais negros. “São espaços que ficaram marcados em suas memórias até hoje, que promoveram eventos onde essas pessoas sentiam-se valorizadas em suas atuações socioprofissionais, fundamentais na elevação da autoestima e na constituição e perpetuação das famílias.” Na visão da historiadora, algo fundamental para a sobrevivência dessas pessoas, num contexto de extremo racismo e de hierarquias raciais reconfiguradas no período pós-abolição.

O berço do Carnaval da cidade

Enquanto a SCB União comemora o centenário, a Escola de Samba Acadêmicos do União fez 50 anos no início de 2023. A data foi celebrada da melhor forma: com a retomada do Carnaval de rua de Santa Cruz do Sul, com desfile no dia 25 de fevereiro.

Considerado o berço do Carnaval do município, o União ajudou a formar outras entidades ligadas à festa popular. “Todas as escolas que surgiram em Santa Cruz têm alguém que saiu aqui do União para fazer outra escola, outro núcleo. O União foi o centro da unificação e espalhou o Carnaval para toda a cidade”, afirma o vice-presidente do clube, Clóvis Roberto Silveira, de 69 anos.

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Continuar a resistir e ser relevante

Para a presidente Marta Regina dos Santos Nunes, é no segmento educacional que se encontra o futuro do Uniãozinho. Afinal, são 100 anos de história e, apesar de toda a resistência que já existe no clube, manter-se nas próximas décadas será um desafio. “Nenhum clube é como era antes, muitos tiveram que se adequar para se manter. Mesmo que eu não continue na gestão, pretendo continuar com um vínculo forte na parte educacional. Sou professora e vejo como libertadora a educação para a comunidade negra. O poder real vem através da educação.”

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Segundo ela, o Carnaval, considerado carro-chefe do Uniãozinho, é importante, mas o clube não pode se basear somente nisso. “Dá para caminhar com as duas coisas juntas; pode ter uma escola de samba e formação no campo educacional. Podemos ser um espaço cultural, de lazer, de esporte, mas a parte cultural-educacional pode fortalecer a comunidade. Tem gente que só nos conhece pelos projetos. É resistir e ter a capacidade de continuar sendo relevante, porque tudo que não é relevante some com o tempo”, finaliza Marta. 

O diretor de Patrimônio, Fábio Nunes, enxerga o centenário como um tributo a todos que o antecederam. “A ideia do centenário é também o resgate da visibilidade, dessa inclusão na história do município, porque poucos segmentos são centenários.” Já para o vice Clóvis Silveira, a participação do União deve ser elevada em todos os segmentos da sociedade santa-cruzense. 

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