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CASOS DO ARQUIVO

A história de Bianca, do drama à superação

Foto: Rafaelly Machado

Bianca (de vermelho) ao lado do pai Fábio, da mãe Patrícia e da irmã Brenda. Família juntou forças ao longo dos anos para vencer batalha pela sobrevivência da primogênita

Há 15 anos, em 1º de fevereiro de 2006, Patrícia Couto Corrêa e Fábio Alexsander Corrêa viviam um drama. Aguardavam na sala de espera do Hospital Santa Cruz por um milagre. Entre a vida e a morte, a pequena filha do casal, Bianca Couto Corrêa, de 7 meses, travava uma luta pela sobrevivência após ter sido atingida no pescoço por um tiro de revólver na tarde do dia anterior, 31 de janeiro.

Ela foi vítima de uma bala perdida em frente à casa onde morava com os pais, na Rua Augusto Bernardo Kessler, no antigo Bairro Glória – hoje Santa Vitória. “No meio daquele tiroteio, do nosso desespero e dos gritos de vizinhos, a gente se preparava para levar ela ao hospital. Uma pessoa que eu não conhecia, que não fazia ideia de quem era, chegou caminhando perto de mim, se apresentou como pastor da igreja e perguntou ‘tu acreditas no poder de Deus?’. Respondi que sim, e ele completou ‘então tua filha está salva’. E encostou a Bíblia na cabeça dela”, contou Patrícia.


O momento de fé junto a um desconhecido antecedeu o início de uma corrida dos pais para manter a bebê respirando e garantir o socorro. Passados 15 anos do fato, a Gazeta do Sul revive essa história de fé e luta pela vida na segunda reportagem da série Casos do Arquivo, e expõe a batalha dos pais Fábio e Patrícia pela sobrevivência da filha ao longo dos anos.

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Relembra ainda o trabalho policial que identificou as circunstâncias e os autores do crime e mobilizou até mesmo o secretário estadual da Segurança Pública. Mais do que isso, conta os caminhos que levaram Bianca Couto Corrêa de uma bebê quase morta a uma jovem feliz e líder de turma, que enfrenta de cabeça erguida as sequelas do ato que quase lhe tirou a vida.

“Clima apavorante e desesperador”

Era manhã de forte calor no dia 31 de janeiro de 2006 quando Fábio Alexsander Corrêa saiu para trabalhar. O eletricista, no entanto, passou mal logo cedo e foi direto ao Hospitalzinho com fortes dores estomacais. Passou boa parte do dia no local recebendo atendimento. Por volta das 15h40 foi para casa, na Rua Augusto Bernardo Kessler, que ficava a apenas 700 metros de onde estava.

Depois de contar à esposa sobre a indisposição que o levou a buscar atendimento médico, resolveram pegar dois filmes na locadora do bairro para assistir no quarto junto à primogênita Bianca. “Na nossa casa pegava muito sol e estávamos assistindo filme com ventilador ligado quando minha irmã, que morava duas casas ao lado, nos chamou para sentar à sombra em frente à residência dela. De primeira não aceitamos, pois eu ainda não estava muito bem do estômago. Mas ela chamou novamente, aí fomos”, contou Fábio.

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A esta hora – 16h45 – os familiares se reuniram na calçada para tomar chimarrão. “A Bianca estava naquela fase de senta, levanta, engatinha pelo chão. Começamos a escutar barulhos de tiros, mas aquilo para nós era normal, pois a gurizada fazia tiro ao alvo no colégio ali perto. Foi então que os disparos começaram a ficar mais próximos de onde estávamos. Só deu tempo de pegar ela de frente para mim, para correr para o lado. Escutei um barulho e algo como um sopro de vento muito forte passando por mim”, comentou a mãe, Patrícia. A menina Bianca, de apenas 7 meses, havia levado um tiro de revólver calibre 22 no meio do pescoço.


“Foi tudo muito rápido. Quando corri já tinha crianças chorando, do outro lado da rua estava uma mulher grávida com a mãe dela, havia uma gritaria na rua. Um clima apavorante e desesperador. Olhei para a Bianca e a cabeça dela ficou mole e caiu para trás e havia um buraco no meio da garganta”, disse a mãe. O pai Fábio saiu para buscar ajuda e deu sorte, pois um senhor estava saindo da casa da sogra naquele momento, que ficava próxima.

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“Antes de sairmos, conversei rapidamente com o pastor que eu não conhecia e entramos na Brasília do senhor para irmos ao Hospitalzinho”, complementou Patrícia. No local, foram realizados os primeiros socorros. “A doutora que estava no local entrou em choque. Fomos muito bem atendidos, mas era muito desespero, nunca tinham lidado com uma situação dessa”, salientou o pai Fábio.

Uma ambulância dos Anjos em Ação, como era conhecido o Grupo de Atendimento de Emergência (GAE) do Corpo de Bombeiros na época, transferiu a criança e pais ao Hospital Santa Cruz. “Quando chegamos no hospital, já pelas 17h30, o pessoal da Gazeta já estava lá, junto com uma multidão de parentes. Os enfermeiros entraram com ela lá pra dentro do hospital, e nós só fomos ter notícia sobre a Bianca já quase na virada do dia 31 para o dia 1º”, relembrou Patrícia.

Um anjo chamado por um telefonema misterioso

O tiro entrou no pescoço de Bianca e caminhou na região do peito antes de atravessar o corpo. Atingiu tecidos próximos da traqueia, o que ocasionou um estreitamento de um centímetro no órgão do sistema respiratório, com consequente redução do fluxo aéreo para os pulmões. Quando ela deu entrada no Hospital Santa Cruz, teve uma primeira parada cardiorrespiratória.

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“A doutora Fabiani Renner atendeu ela. Reanimaram a Bianca e, nesse meio tempo, entrou o anjo da nossa vida, que eu sempre me emociono ao lembrar, doutor Rogério Hein”, salientou Patrícia. O médico, pneumologista adulto, recebeu uma autorização por escrito dos pais para tomar conta de Bianca e auxiliou a pediatra nas ações a serem tomadas. A família acredita que foi o destino que o fez ir até o local naquela hora e naquele dia, precisamente.

“Ele nos contou, um tempo depois, que recebeu um telefonema quando chegou em casa naquele dia, de que um paciente dele estava ruim e ele precisava ir para o hospital. Chegou no Ana Nery, onde ele atende, e não havia chamado, então foi ao Santa Cruz, viu a movimentação toda e tomou conta da situação. Foi se lembrar do motivo de ter saído de casa já perto da meia-noite. Quando ele foi procurar, ninguém havia ligado pra ele. Foi algo divino e era pra ele ter ido lá”, comentou a mãe.


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Bianca foi entubada e levada para a UTI pediátrica. Lá, teve uma segunda parada cardiorrespiratória. Durante esse tempo, já próximo da meia-noite, os pais e parentes no lado de fora do hospital não sabiam o que estava acontecendo, pois os médicos estavam atendendo a bebê. “Estávamos aflitos. Minha mãe trabalhava na casa do doutor Marcelo Dotto. Ela ligou para ele e ele disse que iria ver a situação. Chegou lá e quando saiu nos disse que só um milagre para salvar a nossa filha, que tudo que era possível foi feito.”

Neste momento da entrevista, a mãe, em meio às lágrimas, relembra o momento em que viu a filha pela primeira vez após ela dar entrada na casa de saúde. “Ela estava toda com uma cor escura, praticamente preta, inchada, duas vezes o tamanho que ela era, cheia de aparelhos por volta.” Entubada e em coma induzido, Bianca lutava para sobreviver.

Em entrevista à Gazeta, família relembrou momentos de tensão


“Conseguimos tocar nela cinco dias depois. Lembro que mexi embaixo do pé esquerdo dela, e ela mexeu a perna esquerda. Quando mexi no direito, ela não mexeu nada. Chamei o doutor Rogério Hein para ver a situação e ele nos disse que naquele momento já podia garantir a vida da Bianca, só que não tinha como dar certeza que ela não ficaria em estado vegetativo, ou se não iria falar, ou se não iria escutar”, relembrou o pai.

Tempos difíceis, mas de aprendizado

Depois de 23 dias na UTI, melhorando um pouco a cada dia, a menina teve alta, mas a luta pela sobrevivência estava longe do fim. A família não voltou mais para a casa do Bairro Glória e realizou um desejo antigo de sair no local, devido ao perigo. Passaram então a morar com a mãe de Patrícia, no Bairro Goiás.

“Quando saímos do hospital, a Bianca parecia um saco de carne. A gente colocava ela no sofá, ela caía sem movimento ou sustentação. Ela não sorria, não tinha reação, aí começamos a batalha das fisioterapias”, disse a mãe.

Alta do hospital foi no dia 24 de fevereiro


Em 21 de junho de 2006, a menina teve uma grave crise de falta de ar, o que a levou ao hospital novamente. “Era difícil ver ela assim. Chorei tudo que tinha para chorar e pedi pra Deus devolver a vida dela, devolver o sorriso dela. Quem tem filho vai entender o que digo. Tenho muita fé e, no outro dia, ela começou a expelir muito catarro pela boca e na fralda saía também. A médica perguntou o que eu tinha feito, pois o pulmão dela estava limpo e agora era só cuidar. Agradeci a Deus por mais essa ajuda”, salientou Patrícia.


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Foram 11 anos de fisioterapia para que os movimentos fossem melhorando. Devido ao estreitamento na traqueia, Bianca não consegue deitar de forma completamente reta na cama, apenas levemente elevada. Fez três cirurgias, todas supervisionadas pelo doutor Rogério Hein, que serviriam para soltar os tendões, tecidos e musculatura que haviam sido comprometidos devido às paradas cardiorrespiratórias, sobretudo no lado direito do corpo.

A família não tinha dinheiro para comprar remédios, e a bombinha de que ela precisaria para exercitar a respiração era vendida na época a R$ 88,00 e durava apenas 30 dias. “Vendemos uma TV, DVD, tudo que a gente tinha de valor, com minha mãe sustentando a casa, pois eu trabalhava na safra, mas não estava naquele momento para cuidar dela, e o Fábio tinha perdido o emprego. Foram momentos complicados, mas tudo que a gente passa na vida serve de aprendizado”, disse Patrícia. Em 13 de fevereiro de 2007 a família se mudou para uma casa própria, no Bairro Aliança. Em 2009, a irmã de Bianca, Brenda Couto Corrêa, nasceu.

“Sempre achei fácil me adaptar”, diz Bianca

O projétil que entrou no corpo de Bianca queimou os nervos que mandavam os estímulos para a parte da mão, o que a fez também precisar realizar procedimentos e adaptações ao longo dos anos. As pequenas dificuldades de movimentação são tiradas de letra por Bianca. “Eu cheguei a escrever com a mão direita no início, mas mudei para a mão esquerda depois de um tempo”, disse a jovem, hoje com 15 anos.

“Sempre achei fácil me adaptar. Não preciso de ajuda pra nada.” Diferente dos pais, a menina se mostrou tímida na entrevista e ouviu atentamente a história contada por eles. Perguntada se sabia tudo o que tinha acontecido com ela, foi rápida na resposta: “Meus pais sempre contaram tudo pra mim.”


A mãe completou: “Uma vez, quando ela tinha 4 anos, a gente sentou para jantar e ela perguntou pra vó dela por que esse homem tinha dado um tiro e queria matar ela, e se era porque ele não gostava dela. Eu fiquei sem ação. Aí minha mãe explicou que ele estava brigando com outros e aconteceu.”


A menina passou com êxito pelo ensino fundamental na escola Felippe Jacobs e vai para o ensino médio em 2021. “Na creche já falavam que a Bianca era líder da sala, comandava as brincadeiras. Na escola nunca sofreu qualquer preconceito e sempre foi uma das líderes de turma”, comentou a mãe. A festa para comemorar os 15 anos estava armada para 7 de junho de 2020. A pandemia veio e se tornou mais um obstáculo na vida da família.

“Estávamos com tudo pronto, aí deu a pandemia e a sede onde faríamos a festa fechou e precisamos cancelar tudo. Agora estamos programando uma viagem para os 16 anos dela, mas estamos observando como a pandemia se comporta”, ressaltou Fábio, que hoje é vigilante em uma empresa multinacional.

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Ao final da entrevista, o pai revelou outra surpresa. “Hoje vamos em uma igreja, que fica a uns 20 metros de onde o fato ocorreu, e adivinha quem é o pastor?” Paulo Santos, o mesmo pastor que colocou uma bíblia na cabeça da menina logo após ela levar o tiro em 2006, foi encontrado pela família anos mais tarde.


“Uns 6 anos depois minha irmã comentou o assunto em uma reunião da igreja e esse pastor ouviu e revelou que tinha sido ele. A gente sempre queria conversar com ele, mas depois de um tempo ele foi embora para Giruá. Quando voltou, conseguimos reencontrá-lo e lembrar comovidos da situação”, comentou Patrícia.

Os pais, ambos com 42 anos, se emocionam ao relembrar tudo que passaram e dizem não guardar rancor dos responsáveis pelo fato. “É inacreditável. Se a gente conta por aí que uma criança de 7 meses levou um tiro na garganta e sobreviveu, ninguém acredita. Não tiramos um dia da nossa vida para odiar ninguém por nada. Só focamos nela. Nosso alvo de preocupação sempre foi garantir a vida dela e hoje podemos nos orgulhar de ter ela bem, líder no colégio e feliz”, disse a mãe.

Operação Vida Nova

Tão logo o fato ocorreu, a mobilização das forças de segurança para capturar os responsáveis foi imediata. No mesmo dia, a Brigada Militar fez buscas no bairro e coletou as primeiras informações sobre o caso com populares, que relataram que jovens estavam correndo pelo bairro após o tiroteio. O medo, no entanto, fez com que nenhum nome fosse revelado aos PMs, embora os moradores conhecessem os envolvidos. No dia seguinte, o comandante do 23º Batalhão de Polícia Militar (23º BPM), tenente-coronel Cláudio Mattanna, determinou que diligências fossem realizadas para encontrar as armas do crime.

“Vamos realizar atividades intensas e fortes no local”, comentou na época. A mobilização ganhou repercussão em todo o Rio Grande do Sul quando o secretário estadual de Segurança Pública, José Otávio Germano, se pronunciou sobre o caso e determinou a realização de operações especiais na Zona Sul de Santa Cruz do Sul para “restabelecer a ordem e a tranquilidade dos moradores e efetuar as prisões necessárias”.

Uma investigação já havia sido iniciada pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) da Polícia Civil de Santa Cruz do Sul, que estava sob comando do delegado Antônio Firmino de Freitas Neto. Presente de forma efetiva na investigação, o inspetor da Polícia Civil, Orlando Brito de Campos Júnior, recordou o trabalho policial que culminou na revelação das motivações do tiroteio e na identificação dos participantes.


De acordo com Campos Júnior, era comum naquela época gangues de jovens menores de idade ou pouco acima dos 18 anos realizarem confrontos entre os bairros. “Naquela ocasião, havia um confronto entre jovens do Menino Deus contra indivíduos que moravam ali no Bairro Glória. Naquela tarde, dentre os disparos aleatórios que fizeram, um acabou acertando Bianca”, comentou o inspetor, que relembrou a dificuldade em finalizar o inquérito.

Delegado Firmino e inspetor Orlando prenderam Tico-Tico, autor do disparo, no Glória | Foto: Lula Helfer/Banco de Imagens/Gazeta do Sul


No dia 3 de fevereiro, a Polícia Civil fez uma reconstituição do tiroteio, que determinou que a bala de calibre 22 foi disparada a 215 metros de onde Bianca estava junto com a família. “Foi uma investigação bastante delicada. A gente sabia da questão envolvendo as gangues armadas, mas sabíamos que seria difícil apurar a autoria com as provas, sobretudo pelo silêncio das testemunhas. Tivemos que usar de todos os recursos disponíveis e, felizmente, tivemos a possibilidade de apurar a autoria do fato, inclusive com o cumprimento de um mandado de prisão e dois de internação.”

No dia 10 de fevereiro de 2006, um homem de 18 anos foi preso pela Polícia Civil na denominada Operação Vida Nova. O indivíduo, com o apelido de Tico-Tico, foi denunciado como o atirador da bala de revólver calibre 22 que acertou Bianca. Ele foi encaminhado ao Presídio Regional de Santa Cruz do Sul. Outros dois menores de idade, de 15 e 17, foram apreendidos acusados de participação no fato.


Na investigação, provou-se que o trio fazia parte de uma gangue do Bairro Glória que estaria em confronto naquele dia com um indivíduo conhecido como Lacraia, que fazia parte de um grupo do Bairro Menino Deus. “Essa operação que fizemos serviu até para inibir a ação daqueles grupos naquela época, que eram dominantes ali no bairro. Felizmente deu tudo certo e conseguimos realizar a investigação com pleno êxito”, ressaltou o inspetor.

Embora ressalte o profissionalismo dos investigadores durante o trabalho, Orlando reconhece que o fato dramático ocorrido com Bianca mexeu com o emocional dos policiais. “Vivenciamos o sofrimento das pessoas e tentamos nos colocar no lugar delas, pois o sentimento que é típico do ser humano atinge o policial também. Mas não deixamos que a emoção guie o nosso trabalho, pois o profissionalismo está em primeiro lugar.”

Repercussão

Em 2006, o então repórter policial Ricardo Düren acompanhou de perto o drama da família Corrêa e contou nas páginas da Gazeta do Sul todos os passos do caso, desde o fato e a grande repercussão até a investigação e a prisão dos envolvidos.

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