O Vale do Rio Pardo e a Serra do Sudeste viram surgir um cidadão cujo nome pode ser elencado entre os heróis do Brasil. Foi em 24 de junho de 1880, oito anos antes da Abolição da Escravatura, que na Coxilha Bonita da Serra do Herval, então interior de Encruzilhada do Sul e hoje Dom Feliciano, nasceu
João Cândido Felisberto.
Incorporado à Marinha, acabou por ser, em 1910, o líder da Revolta da Chibata, que exigia o fim dos maus -ratos contra marinheiros. Cândido foi preso, quase morreu na masmorra e, por fim libertado, foi expulso da Marinha. Fixou-se nos subúrbios do Rio, constituiu família e se ocupou de trabalhos esporádicos. Até sua morte, em 6 de dezembro de 1969, aos 89 anos,
teve de ficar à margem.
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Hoje, só um de seus filhos segue vivo: Adalberto do Nascimento Cândido reside em São João de Meriti (RJ). A partir de lá, em entrevista por videochamada, conversou com a Gazeta do Sul acerca de suas memórias do pai; das viagens que fez com ele ao Rio Grande do Sul, e da expectativa de que seja efetivamente incluído no Livro dos Heróis da Pátria.
Na iminência da data de 13 de maio, próxima terça-feira, dia em que em 1888 foi assinada a Lei Áurea, abolindo a escravatura no Brasil, esse conteúdo tem como propósito realçar a importância do resgate
da memória de pessoas negras de atuação relevante na história nacional.
João Cândido saiu da região para os livros
Mais de um século depois de ter liderado seus companheiros de Marinha do Brasil na Revolta da Chibata, em 1910, o gaúcho João Cândido Felisberto, nascido em 1880 e falecido em 1969, ainda aguarda por ter seu nome definitivamente firmado no panteão dos grandes personagens da história. E quem se empenha nesse sentido é o único filho ainda vivo do Almirante Negro: Adalberto do Nascimento Cândido tem 86 anos e reside em São João de Meriti, nos subúrbios do Rio de Janeiro. A partir de sua residência, ele conversou com a Gazeta do Sul por videochamada em meados de janeiro, na companhia da neta Lorrane, 30.
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Candinho, como é chamado, manifesta expectativa pela aprovação, que ele espera que ocorra em breve, do projeto de lei segundo o qual João Cândido teria seu nome inscrito no Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria. De forma surpreendente, e 114 anos após os acontecimentos da Revolta da Chibata, quem ainda oferece obstáculos a um pleno reconhecimento da atuação do Almirante Negro são justamente instâncias da Marinha.
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Segundo Candinho, as restrições ou indisposições chegam a tal ponto que, ainda hoje, pessoa com o sobrenome Cândido sofre restrições de ingresso na Marinha. E, no entanto, o filho do marinheiro observa que seu pai é tido, em todas as regiões do País, como um herói popular. Tanto no período em que João Cândido ainda era vivo quanto após sua morte, inúmeras homenagens foram prestadas, de diferentes maneiras, com a inauguração de estátuas e bustos e a denominação de ruas e logradouros.
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Na entrevista à Gazeta, Candinho recordou da visita que ele próprio fez ao lado do pai ao Rio Grande do Sul, para acompanhar cerimônias em Porto Alegre, bem como em Rio Pardo e Cachoeira do Sul. Em Rio Pardo, em especial, quando era menino, João Cândido viveu por breve período sob os cuidados do Almirante Alexandrino de Alencar, em cujo solar inclusive morou, em um dos quartos anexos.
Nascido no interior de Encruzilhada do Sul, na Serra do Herval, filho de pai alforriado e de mãe ainda escrava, João Cândido foi conduzido até Rio Pardo e apresentado a Alexandrino de Alencar, então um influente político. Graças à intervenção deste, Cândido transferiu-se a Porto Alegre e ali ingressou na Marinha. Deslocado para o Rio de Janeiro, capital da República, acabou por viajar para diferentes lugares do mundo, ainda jovem. Foi destacado a seguir para a Inglaterra com o grupo responsável por trazer de lá os modernos encouraçados que o Brasil havia adquirido e o tornavam um dos países mais bem equipados no mundo.
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Foram essas belonaves de que marujos tomaram conta nos dias 22 e 27 de novembro de 1910, num motim de protesto contra os maus-tratos infligidos contra marinheiros, entre eles o açoite, e isso mais de duas décadas após a abolição da escravatura. A revolta coincidiu com a posse de Hermes da Fonseca na presidência, em que, curiosamente, Alexandrino de Alencar era o ministro da Marinha.
Ainda que os revoltosos tenham sido anistiados (e com o pedido de eliminação dos castigos atendido), a repressão do governo foi forte. Marujos foram aprisionados em uma masmorra na Ilha das Cobras, no litoral do Rio, na véspera do Natal. Dentre 19 ocupantes numa cela apenas dois sobreviveram, sendo um deles Cândido.
Na sequência, sofreu processo e por fim foi desligado da Marinha. Nunca mais pôde voltar a atuar nessa área; ao longo dos anos, fez trabalhos diversos e se dedicou à pesca, em périplos entre São João de Meriti, onde se fixara, e o centro do Rio. Tornou-se um herói dos marinheiros, mas nunca mais pôde voltar ao mar.
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A vida em família
O Almirante teve vários relacionamentos. O primeiro foi com Marieta, filha do carpinteiro Freitas, na casa de quem se instalou quando foi excluído da Marinha, em 1912. Casaram-se em 1914, mas a esposa faleceu em 1917. Tiveram dois filhos, Arnaldo e Mário.
Três anos depois conheceu Maria Dolores, de 18 anos, e com ela teve Nança (era assim seu nome), João Cândido, Daniel (que logo morreu), Zeelândia e mais um filho ao qual novamente deram o nome de Daniel. A relação acabou de forma trágica, pois a esposa suicidou-se em 1928: ateou fogo no próprio corpo. Novamente viúvo, João Cândido uniu-se com uma mineira, com a qual teve o filho Mackenzie. Porém, se separaram.
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Por fim, conheceu Ana do Nascimento, natural de Paraíba do Sul (RJ), e com ela teve cinco filhos: Almerinda, Arnaldo (repetindo o nome de filho do primeiro casamento), Adalberto e José Crokner. Adalberto, o Candinho, único filho de João ainda vivo, nasceu em 30 de novembro de 1938 e foi casado por 51 anos com Nadir, falecida em 2013.
Quem referiu muitos desses dados foi a filha Zeelândia, falecida em 2006, em entrevista realizada por Sílvia de Mendonça e publicada no Jornal da Marcha em 2005.
Museu preserva a sua memória em S. J. de Meriti
A cidade de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, acabou por ser a região na qual, afastado da Marinha, o Almirante Negro se fixou e onde constituiu família. Ali ele morou por cerca de quatro décadas. Nos subúrbios da capital carioca, o município atualmente possui cerca de 600 mil moradores, tendo ligação de metrô com a área central do Rio, da qual dista em torno de 30 quilômetros.
Familiares de João Cândido, em especial seu filho Adalberto, o Candinho, empenhavam-se para que fosse criado espaço memorial a fim de salientar seus feitos. Esse intento finalmente foi concretizado ao final do ano passado, após 17 anos de tratativas desde o projeto inicial. Em 6 de dezembro de 2024 foi inaugurado o Museu Marinheiro João Cândido. Desde então, tem sediado shows musicais e atividades culturais diversas, como debates, exposições e mesas-redondas. Candinho compareceu à solenidade de abertura e se mostrou muito emocionado. João Cândido é reconhecido oficialmente como herói municipal de São João de Meriti e herói estadual do Rio de Janeiro.
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O Museu Marinheiro João Cândido fica no antigo Casarão do Embaixador, construção histórica que foi lar do embaixador português Martinho Nobre de Melo. Além de preservar a memória do Almirante Negro, o espaço oferecerá exposições permanentes sobre sua vida, além de atividades culturais e educativas.
O projeto, que contou com apoio do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e da Fundação Palmares, também revitalizou as áreas ao redor, garantindo melhorias em acessibilidade, iluminação e urbanização.
Entrevista com Adalberto do Nascimento Cândido
O senhor chegou a acompanhar viagem de seu pai ao Rio Grande do Sul, não é?
Sim, acompanhei ele em Porto Alegre, Rio Pardo, também em Encruzilhada do Sul e Cachoeira do Sul. Isso foi em 1959, quando do lançamento do livro do Edmar Morel [A Revolta da Chibata, disponível pela editora Record]. Tivemos contato com um grupo da Sociedade Floresta Aurora [fundada na capital gaúcha em 1872, considerado o mais tradicional dos clubes negros da cidade] , coordenado pelo deputado Carlos Santos [1904-1989] na época, e que chegou a ser governador do Estado [foi o primeiro deputado e governador negro no Rio Grane do Sul e presidia a Assembleia Legislativa quando foi inaugurado o Palácio Farroupilha, em 1967].
Vocês ficaram por quanto tempo no Rio Grande do Sul?
Eles nos chamaram para uma semana de visitas. Meu pai saíra do Rio Grande do Sul quando tinha 14 anos e nunca mais tinha retornado. Assim, aproveitou para rever lugares por onde andara. Na época, o governador era Leonel Brizola. Ficamos hospedados num hotel que ficava na Avenida Borges de Medeiros, e dali nos deslocamos para diversas partes. Fomos ainda a Rio Pardo, Encruzilhada do Sul e na região em que nasceu, que agora fica em Dom Feliciano. Também em Cachoeira do Sul. Esteve com prefeitos, recebeu muitas homenagens…
Alguma lembrança em especial daqueles dias?
Em Cachoeira, lembro que plantou árvore para marcar a passagem dele por lá. Em Porto Alegre, fizeram um busto, mas a Marinha, a Capitania dos Portos, embargou. Agora já existe um busto na Praça Marinha do Brasil. Visitamos ainda a PUCRS, o Palácio Piratini, muitos lugares. Esteve inclusive com o Lupicínio Rodrigues. São diversas homenagens, e que eu pude acompanhar. Em uma ocasião, em lançamento de livro da Fundação Banco do Brasil, fomos a Porto Alegre e a Rio Pardo. Fomos até a margem do Rio Jacuí, onde ficam os velhos canhões [antigo Forte Jesus Maria].
Houve ainda a entrevista para o Museu da Imagem e do Som…
Exatamente, foi na época da ditadura, e estive lá com ele [em 29 de março de 1968, no Rio]. Gravou o seu depoimento, que está disponível junto de grandes personagens, como o Pixinguinha, e tantos, tantos outros.
Como o seu pai reagia a todas essas homenagens?
Sabe que ele era muito fechado, sempre reservado. Ele nunca deixava transparecer muita coisa.
O que representou acompanhá-lo nesses momentos?
Para mim sempre era motivo de orgulho estar com ele, eu, como filho mais novo, e poder presenciar todas essas homenagens que estava recebendo. Naquele momento, em 1959, tinha ainda a minha irmã Zeelândia; com o falecimento dela, fiquei só eu [Zeelândia Cândido de Andrade faleceu em 2006, aos 82 anos] . Eu de fato me sentia muito orgulhoso por ter um pai com essa magnitude, aclamado como herói nacional, por ter liderado esse movimento que acabou com os castigos corporais que ainda se aplicavam na Marinha naquela época, em 1910.
O senhor chegava a ir junto no tempo em que ele ia trabalhar no centro do Rio?
Acompanhava sim, muitas vezes. Nasci em 1938, quando meu pai tinha 58 anos. Na época da Revolta da Chibata ele tinha 30 anos; era de 1880. Daqui de São João de Meriti, acompanhava ele de trem e depois se pegava bonde até a Praça XV de Novembro, no centro do Rio. Em 1959, quando fomos para o Rio Grande do Sul, eu tinha pouco mais de 30 anos.
Como o senhor vê e como acompanha o processo para inscrever o nome dele no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria?
Acompanho com muita expectativa, assim como todos na família. A Marinha segue criando empecilhos para que isso se concretize. Os subalternos não, esses veem com bons olhos, mas a oficialidade, na hierarquia, interfere. Está lá o processo em Brasília, tramitando, mas os comandantes da Marinha sempre criam algum embargo, sempre criticam. O autor do projeto [PLS 340/2018, do Senado Federal] foi o senador Lindbergh Farias (PT/RJ). A Marinha pode não considerar ele como herói até hoje, mas o povo considera, e acho isso valioso, muito importante.
Perante o povo brasileiro, o grande público, como o senhor entende que a imagem de João Cândido repercute hoje?
Perante a sociedade brasileira, ele é um herói do povo, mas não é um herói da Marinha. O Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria presta homenagem a personagens que deixaram seu nome na história do Brasil, e eu acho que meu pai deixou o dele gravado. A imprensa falada, escrita, televisada, todos ainda me procuram para dar entrevista. Aqui em São João de Meriti e em tantas cidades Brasil afora, há ruas com seu nome. Ele recebe homenagens em todos os lugares. Eu mesmo viajei muito, para vários estados, acompanhando algumas dessas atividades como convidado.
Ele também foi lembrado no Carnaval do Rio…
Exato! No ano passado, na Sapucaí, a escola Paraíso do Tuiuti teve ele como tema de samba-enredo. E eu estava lá. Também estava a família do João Bosco, que o homenageou na música “João Cândido, o Mestre-Sala dos Mares”. Ele merece admiração, independente de classe, de cor. É muito querido.
Há também muitos livros escritos e publicados sobre ele…
São muitos. Nem todos tenho em mãos. O lançamento do livro do Edmar Morel, em 1959, foi importante, porque ali passou a ser lembrado, voltou a ser chamado. A repercussão maior começou ali. Inclusive, foi logo depois disso que fizemos a viagem para o Rio Grande do Sul. Teve ainda livro de uma professora de Encruzilhada do Sul, outro no Paraná; o do professor Álvaro Pereira do Nascimento [João Cândido: o mestre-sala dos mares], tese na Unicamp sobre a história do meu pai. Tem o da professora e historiadora Sílvia Capanema, que mora há mais de 30 anos na França, também exerce cargo político lá [João Cândido e os navegantes negros: a Revolta da Chibata e a segunda abolição]. Fizeram muitos livros sobre ele. Agora mesmo outros surgem. Soube que saiu um no Rio Grande do Sul [do jornalista e escritor Mario Pepo Santarem, de Rio Pardo, João Cândido: sonho e castigo]. Guardo tudo que chega até mim.
Como é a rotina do senhor?
Estou com 86 anos, trabalhei por 65 anos, desde os 14. Desde o período da pandemia estou mais recolhido. Meus familiares quase todos moram por perto aqui, em São João de Meriti. Tenho três filhos, Ronaldo, Roberto e Rosane; sete netos e quatro bisnetos. Um primo, João Cândido de Oliveira Neto, mora em Porto Alegre. Para o Rio já não vou mais; quando trabalhava, ia de segunda a sexta. Fico aqui conversando com amigos, vou na casa da filha, da neta, me chamam para passear. Estou caseiro, mas com a saúde boa.
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