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PRESENÇA NEGRA

Dom Gílio: “Ainda tenho saúde para poder ajudar”

Foto: Alencar da Rosa

O bispo na capela instalada em sua residência, no Bairro Bom Jesus: a boa disposição nunca o abandona

Aos 72 anos, dom Gílio Felício mantém o sorriso aberto e a boa disposição que sempre mostrou em todos os lugares pelos quais passou. Depois de muitos anos, o primeiro bispo negro do Rio Grande do Sul voltou a morar em Santa Cruz, onde viveu boa parte da infância e adolescência e iniciou sua trajetória na Igreja Católica. Gílio foi sacerdote em muitas cidades, bispo auxiliar da Arquidiocese de Salvador da Bahia e bispo da Diocese de Bagé (RS) de 2003 até 2018, quando teve seu pedido de renúncia – uma espécie de “aposentadoria” – aceito pelo papa Francisco. Na época, alguns problemas de saúde levaram-no a tomar a decisão.

Dom Gílio: “A Igreja Católica está viva e presente no mundo inteiro”

Com a renúncia, dom Gílio passou à condição de bispo emérito de Bagé. Hoje ele reside com familiares na Rua Carlos Hoppe, Bairro Bom Jesus, onde conversou com a Gazeta do Sul nessa quinta-feira. A aposentadoria não significa inatividade. Há poucos dias, ele visitou os idosos da Associação de Apoio às Pessoas Necessitadas (Asan) como integrante da Caravana da Alegria, projeto da Secretaria Municipal de Habitação, Desenvolvimento Social e Esporte (Sehase) que leva diversão ao público de instituições. Na ocasião, Gílio tocou violão como músico voluntário em um grupo no qual também estava Elírio, um de seus irmãos. “As pessoas se sentiram muito gratas, alegres por aquele momento de confraternização. Sempre que posso, tento oferecer esses gestos de carinho. Ainda tenho saúde para poder ajudar”, comenta.

Além da religião, família e música são elementos fundamentais na vida de Gílio Felício. Na casa da Carlos Hoppe, violões e instrumentos de percussão estão expostos na sala de estar. “O fato de cantar e tocar sempre me ajudou a me aproximar das comunidades.” O bispo emérito nasceu em 1949 em Sério, na época distrito de Lajeado, e chegou a Santa Cruz com 9 anos de idade. Filho de Doralino Felício e Maria Francisca Gomes Felício (já falecidos), é o mais velho de seis irmãos.

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Trabalhou como entregador de jornais da Gazeta do Sul e engraxate antes de sentir o chamado da vocação religiosa. Quem teve contribuição decisiva para isso foi o padre Orlando Pretto, na época pároco da Igreja Conceição, que Gílio e sua família frequentavam. “Ele me deu uma ajuda fantástica”, recorda.

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O carismático Orlando tinha o hábito de visitar as famílias da comunidade. Um dia, o jovem fez a pergunta que há tempos estava em sua cabeça. “Padre Pretto, gente preta pode ser padre?”, indagou. “Mas claro, Gílio. Por que não?”, foi a resposta. Era a década de 1960 e havia uma resistência muito grande em relação ao sacerdócio negro, mas Gílio Felício passou a acreditar que esse seria seu destino. Não lhe faltaram incentivos incondicionais da família e de uma benfeitora: a bancária Edith Eidt, que bancou seus estudos no Seminário de Arroio do Meio – onde ingressou em 1965 após estudar no Colégio Marista São Luís – e nas faculdades de Filosofia e Teologia. “Foi um anjo que encontrei. Meu pai não tinha condições de pagar os estudos”, afirma. “Edith dizia: qualquer coisa que você quiser fazer, eu vou colaborar. Ela deve estar bem perto de Deus agora.” Em novembro de 1978, foi ordenado sacerdote na Catedral São João Batista pelo bispo dom Alberto Etges, em uma celebração que reuniu cerca de 4 mil pessoas.

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Dom Gílio atuou por quatro anos em Passo do Sobrado, especializou-se em Liturgia em São Paulo e voltou para Santa Cruz como reitor do Seminário São João Batista. Tornou-se vigário-geral, sacerdote com poder para ajudar o bispo (à época, dom Sinésio Bohn). Em 1998, o papa João Paulo II nomeou-o bispo auxiliar da Arquidiocese de Salvador da Bahia.

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Acolhimento em todos os lugares

“Graças a Deus, em todos os lugares por onde passei, a comunidade sempre me acolheu”, afirma dom Gílio. Ele recorda que em Arroio do Meio, nos tempos de seminarista, era o único negro. Isso fez com que se preparasse para enfrentar resistências e preconceito, o que não ocorreu da forma como temia. Houve manifestações de racismo, sim, mas pontuais e indiretas, segundo ele. Com o passar do tempo, aprendeu a conquistar os fiéis em qualquer lugar. E, em terras teuto-brasileiras, sua fluência na língua alemã certamente contribuiu para a aceitação. “Sei falar, cantar, ler e fazer um sermão em alemão, sem dúvida”, conta. E foi o que fez em certa ocasião, na localidade de Cerro Alegre.

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Gílio decidiu celebrar uma missa com todas as orações e cânticos na língua alemã, para espanto dos fiéis, que – ele se diverte recordando – mal conseguiam acreditar no que viam. “Nunca recebi tanta atenção de uma comunidade. A missa foi tão forte e bonita que teve gente chorando, muitos vieram me agradecer.” Também já passou um mês atendendo como sacerdote em uma cidade da Alemanha, Kaufering, em substituição ao pároco, que viajara à Terra Santa. As lembranças são as melhores em termos de hospitalidade. “De dois em dois dias, eu almoçava em uma casa diferente.”

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Por outro lado, o contato com o movimento negro fez com que se envolvesse nos debates sobre o racismo. Em 1998, foi um dos criadores da Pastoral Afro-Brasileira, ligada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “Procurávamos ver o que fazer para que os negros não se sentissem machucados, e sim como seres humanos com seus dons. Consegui fazer com que muitos jovens passassem a gostar de sua cor.”

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Segundo Gílio, era comum ver afro-brasileiros desprezarem a própria etnia, porque não se sentiam valorizados. “Essa baixa autoestima é consequência da escravidão. Muitas vezes, ouvi o questionamento: ‘Por que Deus me deixou nascer negro?’. Nesses momentos, minha resposta era: ‘Tu és imagem e semelhança de Deus. Ele, na sua sabedoria, ofereceu o melhor do seu amor quando pensou no negro, no branco, no índio, no amarelo… A cor é um detalhe mínimo para o valor da pessoa humana’.”

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Beleza e urgência

Dom Gílio avalia que a Igreja Católica permanece sólida, apesar do surgimento e expansão de novos grupos religiosos cristãos e seitas. Além disso, ele constata que há um número crescente de pessoas que “não acreditam em nada”.
“A Igreja teve seus problemas e os enfrentou. Mas, graças a Deus, ela está viva e presente no mundo inteiro. Pode ser que em um país não exista nenhum templo, mas certamente haverá uma pessoa católica apostólica romana.” Por outro lado, afirma, é necessário que os líderes religiosos fortaleçam sua vivência junto ao povo, para que os fiéis consigam perceber “a beleza e a urgência dessa doutrina”.

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O bispo emérito não cansa de ressaltar a importância da família, para ele “um oásis”. Tendo saído de casa muito cedo, agora ele aproveita ao máximo a convivência com os irmãos. No dia a dia, gosta de se dedicar também à horta que mantém nos fundos da residência, onde cultiva beterrabas, alfaces, repolhos e outras variedades. Além disso, busca melhorar seus conhecimentos na língua inglesa e mostra interesse pelos livros do historiador Yuval Noah Harari, autor de Sapiens: Uma breve história da humanidade. Ao olhar para trás, sente-se agradecido pelo que viveu e pelas pessoas que auxiliou de alguma forma.

“Eu agradeço a Deus por essa oportunidade que tive, de poder ter favorecido várias pessoas nessa missão religiosa”, salienta.

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