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Lisandra de Carvalho: força e sensibilidade em defesa das mulheres

Foto: Alencar da Rosa

Delegada Lisandra está à frente da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Santa Cruz

É um ciclo de violência. É estrutural. Sair desse emaranhado – de ofensas, de limitações e de degradações – é quase impossível estando sozinha. Por isso, hoje, o poder público tem o dever de oferecer ferramentas para que seja possível tirar mulheres de tais situações. Municípios têm avançado em políticas públicas e Santa Cruz do Sul se destaca pela sua rede de apoio, com inúmeros e diversificados profissionais que buscam reduzir os índices de violência contra a mulher.

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340) traz diversas formas de violência contra a mulher, como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. São vários os tipos de agressões que a vítima pode sofrer, mas, até chegar à física, são muitos os sinais que um agressor pode dar. Tais atos podem chegar a extremos, como o feminicídio. À frente da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Santa Cruz do Sul, a delegada Lisandra de Castro de Carvalho explica que, muitas vezes, a mulher se acostuma com determinadas condutas da pessoa com quem ela convive e essas ações vão se tornando cada vez mais graves.

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“Muitas vezes, alguns comportamentos não são vistos como uma forma de violência e por isso são aceitos. Como a violência psicológica, com humilhações, ofensas, perseguições, cobranças, proibindo ela de frequentar determinados lugares, como, por exemplo, a casa de familiares, onde ela pode contar o que está acontecendo”, observa a delegada.

Lisandra explica que há também a violência patrimonial. “Já recebemos ocorrências do namorado que quebrou o celular da vítima, do ex que subtraiu bens, que levou carro. Claro que várias questões patrimoniais se resolvem na esfera cível através da separação, mas existem algumas condutas que já caracterizam crime.” Além disso, ela enfatiza que a violência sexual pode, sim, acontecer entre companheiros. “Quando a mulher diz não naquele dia, é não, é para se respeitado. Tudo o que vai depois do não caracteriza violência sexual.”

A subnotificação, porém, ainda é grande em razão de a vítima, muitas vezes, não perceber o que realmente está acontecendo. É o machismo estrutural que faz a mulher ver uma determinada atitude como normal. “Ela sabia que sua mãe era agredida, conviveu com isso e acha que faz parte da cultura, e realmente vivemos em uma cultura machista. Mulheres chegam a procurar a delegacia relatando terem sido vítimas de violência há mais de 20 anos, diz a delegada, reiterando que é necessário um processo de conscientização, empoderamento e de coragem.

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Quem é a Lisandra?

Natural de Porto Alegre, Lisandra de Castro de Carvalho entrou na Polícia Civil em 2004 e, em 2005, começou a trabalhar na Deam de Santa Cruz. Lisandra diz ter o “maior orgulho” de ser titular da Deam. “Com o passar do tempo, a gente entende cada vez mais o fenômeno da violência, de como é difícil uma mulher pedir ajuda, conseguir se separar e superar a vergonha de ter que vir registrar, são várias dificuldades.” 

A delegada diz que também há policiais homens com sensibilidade para o tema, mas que a mulher possui um olhar diferente. “É de mulher para mulher que se compreende melhor a situação. Nós, policiais mães, entendemos e nos solidarizamos com as vítimas que também são mães e estão passando por momentos de dificuldade financeira, desestrutura familiar e ainda têm que se dedicar aos filhos, que sofrem junto a violência doméstica.”

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Quase uma santa-cruzense, ela diz que se sentiu muito acolhida no município e que deixou de lado outras propostas dentro da instituição para continuar à frente dos trabalhos da Deam. “Eu valorizo tanto onde estou, tenho tanto orgulho de nos representar, que eu continuo me dedicando, interessada em ideias novas, em trazer o que há de melhor para nossa delegacia. Foi uma acolhida tão prestativa da comunidade. São projetos que só conseguimos colocar em prática porque tem esse respaldo”, conclui.

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Denunciar e combater

Difícil de ser encerrado, o ciclo envolve muito mais que uma mulher que não consegue sair de um relacionamento abusivo. Ele pode vir desde a infância, com a violência vivenciada dentro de casa, vista como algo normal. Um dos fatores que fazem com que as mulheres permaneçam em situações assim é a dependência econômica. “Há uma grande dificuldade para quem depende financeiramente, tem os filhos, o provedor às vezes é o homem, então a mulher suporta mais a violência e demora para registrar e tomar uma atitude mais drástica”, observa a titular da Deam.

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Embora a maioria das denúncias seja de mulheres em situação de vulnerabilidade, Lisandra destaca que a Polícia Civil tem percebido crescimento na procura por mulheres de classes econômicas mais favorecidas. A delegada reforça que pessoas que estão próximas precisam e devem denunciar. “A gente diz que, em briga de marido e mulher, a polícia mete, sim, a colher. Não vamos suportar isso e é nossa missão combater, estimular a denúncia e efetuar as prisões mesmo quando a mulher não quer.”

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A rede de proteção

No mesmo prédio onde hoje se encontra a Deam estão também o Escritório Municipal de Defesa dos Direitos da Mulher, a Patrulha Maria da Penha da Brigada Militar, o Conselho Tutelar, entre outros serviços. O Centro Integrado de Segurança Pública (Cisp) agrega, em um espaço, vários entes da rede de proteção de Santa Cruz, facilitando a denúncia, reduzindo a burocracia e, o mais importante, atendendo as vítimas de forma qualificada. 

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A construção do Cisp fez com que o município se tornasse referência para outras cidades. Janaina Freitas de Oliveira é a coordenadora do Escritório de Defesa dos Direitos da Mulher e da Casa de Passagem. “O escritório é o local onde a mulher vem para uma escuta sigilosa, amorosa. Eu faço essa triagem e vejo se é situação de risco, se é caso de boletim de ocorrência com pedido de medida protetiva”, explica.

A Casa de Passagem, conforme Janaina, é para mulheres vítimas de violência que estão correndo risco de morte. Elas podem permanecer até quatro meses na residência, ou até sair a medida protetiva. “Os casos são de pessoas com vulnerabilidade social ou que têm poder aquisitivo mas romperam o vínculo familiar. Depois, a equipe de assistência social faz uma triagem e vemos a possibilidade dessa mulher de sair da casa empoderada, com aluguel social, ou para algum familiar. É montada toda a estrutura para que ela possa sair dali com seus filhos em segurança.” 

Delegada Lisandra está à frente da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Santa Cruz | Foto: Rafaelly Machado

Muitas vezes, Janaina é chamada de madrugada para o abrigamento das vítimas. O trabalho difícil já a colocou frente a situações extremas, como a de uma mulher que buscou ajuda pois estava com fraturas provocadas por golpes de martelo. “A Guarda Municipal me dá o suporte para segurança nossa e das vítimas. É uma casa normal, como se fosse sua, tem alimentação, monitoras e uma guarda feminina. Funciona 24 horas, todos os dias do ano.”

A diretora de Desenvolvimento Social da Prefeitura de Santa Cruz, Priscila Froemming, também já trabalhou no Escritório e na Casa de Passagem por sete anos. Ela percebe que as vítimas estão tendo mais coragem para denunciar; porém, ainda é preciso melhorar. Em 2021, foram 27 abrigamentos na Casa de Passagem, e neste ano foram cinco. “Na época em que eu estava aqui, não passava de 12 por ano. Elas estão entendendo que têm uma casa-abrigo, que não vão precisar voltar para suas residências em caso de risco, e as próprias delegacias estão mais capacitadas e sensibilizadas”, salienta Priscila.

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Avanços da legislação

A amplitude que o tema vem ganhando nos últimos anos, com debates acerca da violência de gênero e o trabalho especializado dos órgãos públicos, permite que mais pessoas denunciem e que a legislação avance a cada dia. A titular da Deam esclarece que, desde 2021, dois artigos do Código Penal definem como crime a violência psicológica (artigo 147 B) e a perseguição (147 A). “Há maior procura pela rede de proteção, mas isso se dá também porque a legislação evoluiu e agora conseguimos enquadrar condutas que antes não conseguíamos. Com isso, efetuamos algumas prisões, porque esses comportamentos aconteciam reiteradamente e não tínhamos como sustentar a representação para uma prisão.” Outro recente avanço é o crime de descumprimento de medida protetiva.

Números da Deam – 2022 (até fevereiro)

  • Injúria – 22
  • Violência psicológica – 7
  • Assédio Sexual – 5
  • Perseguição – 9
  • Vias de fato – 45
  • Estupro – 4
  • Descumprimento de medida protetiva – 37
  • Lesão corporal – 37
  • Ameaça – 72
  • Prisão em flagrante – 6
  • Prisão preventiva – 4

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Entrevista

Sheryl Andreatta
Psicóloga e mestra em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc)

Como identificar sinais de que se está vivendo violência psicológica?

Em um relacionamento, dificilmente as agressões iniciam com a violência física, mas a partir de uma lógica de controle e desvalorização que produzem fragilidade e dependência. As ações violentas são comumente mascaradas como ciúme, excesso de cuidado ou um temperamento dito masculino. Outra característica é o crescimento gradual, são agressões que têm impacto no entendimento que as mulheres têm de si mesmas e das suas capacidades, comprometendo a autoestima, a rede de relações e as possibilidades de romper com este relacionamento.

Fazem parte deste perfil de agressão as ameaças de terminar o relacionamento, ferir a vítima de alguma forma ou acabar com algo precioso para ela, como uma amizade ou uma oportunidade profissional. As humilhações, com o objetivo de diminuir as características ou conquistas das mulheres diante de amigos e familiares. Insultos, muitas vezes disfarçados de brincadeiras e até xingamentos que levam as mulheres a duvidar da sua própria capacidade e do seu merecimento de afeto, fortalecendo a dependência do agressor. Distorcer os fatos, também conhecido como gaslighting, muito comum nos casos de violência, ocorre para deixar a mulher confusa sobre a realidade.

Como evitar que uma criança se torne um agressor?

Estar comprometido com a mudança deste quadro começa por refletir sobre as relações entre homens e mulheres dentro das famílias, no trabalho e nas relações sociais. Quais as possibilidades que meninas e mulheres têm em viver, transitar, se relacionar e fazer escolhas livremente? Este deveria ser um questionamento de todos.

Por que é tão difícil sair do ciclo de violência?

Nas relações violentas, várias formas de abuso se dão de modo que a mulher não consegue enxergar outras possibilidades ou saídas, além de serem invadidas por um grande sentimento de culpa e vergonha que impede a busca por auxílio. Outros fatores também podem estar associados, como a dependência financeira, falta de apoio social, e a fragilidade de políticas públicas que orientem e amparem o rompimento com os ciclos de violência.

Precisamos de maior eficácia na proteção das mulheres, para que possam efetivamente ficar longe dos agressores após a denúncia. Uma capacidade de apoio e acolhimento nas relações sociais e também nos serviços, para que estas mulheres não sejam novamente julgadas e revitimizadas ao denunciar.

Como a violência pode impactar a vida da mulher?

Em todas as suas formas, a violência põe em risco a saúde mental das mulheres. O medo, a preocupação e o estresse aos quais a mulher está sujeita quando sofre algum tipo de violência podem estar relacionados aos sintomas depressivos, estados de ansiedade, irritabilidade, fadiga, insônia, dificuldade de memória e concentração. Além disso, a experiência da violência marca de forma muito expressiva a subjetividade das mulheres, a maneira como percebem suas capacidades e sua autoestima, além da insegurança e isolamento que podem invadir todas as demais relações. Buscar ajuda psicológica é um caminho importante, já que pode auxiliar as mulheres a retomar o protagonismo da própria história, criando saídas para (re)existir.

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