A nossa única certeza de vida, ironicamente, é a morte. A nossa e a de todos que ao nosso redor convivem. Não sabemos quando e nem como, mas ela fatalmente chegará. Alguns se deparam com as despedidas mais cedo, outros, quando já estão mais velhos. Seja lá qual for o momento, tende a ser um episódio que nos transforma em todos os sentidos.
Eu tinha 8 anos quando o meu pai morreu, aos 61. Vítima de um infarto fulminante, fomos pegos “de surpresa” pelo destino. Mesmo criança, lembro com clareza de certos momentos daquele 16 de setembro. Na minha memória, ficaram gravados tanto alguns instantes em que entendi a gravidade da situação, quanto outros em que achava que não passaria de um braço quebrado. Meu último gesto ao lado do seu Mario foi um cafuné que fiz nele, pouco antes de ele sair para o hospital, de onde, infelizmente, não voltou.
Cinco filhos, a esposa, a mãe, uma irmã, amigos, sobrinhos, cão e gatos. Tivemos que aprender a viver sem ele. Nesse processo, o primeiro passo foi encarar velório e enterro. Precisei passar pelo ritual de despedida para enxergar o que meus olhos não queriam ver. Naquele mesmo domingo em que buscava compreender minha perda, também tentei ignorá-la. Faz parte do processo. Lembro de ter aprendido palavras novas. Não me recordo a quem, mas perguntei o significado de “meus pêsames”. Expressão recorrente naquele momento e com a qual eu jamais tinha tido contato. Fiquei ao lado de minha mãe e meus irmãos durante as despedidas. Entendi que dali não queria desgrudar e minha mãe respeitou a minha vontade, com a sabedoria que mães conseguem ter, mesmo em meio ao caos.
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O luto é um processo único, intransferível. Mesmo sem maturidade para entender a complexidade de sentimentos que rondavam minha família, unidos, nos abraçamos em meio ao sofrimento, acolhemos nossa dor e fomos indo em frente. Um dia de cada vez, cada um em sua fase de vida. Para mim, o primeiro ano sem meu pai foi o mais marcante. Tudo era a “primeira vez sem”. A saudade, aos poucos, vai trazendo mais leveza. Ela é sinal de que há boas lembranças para se guardar. Nestes dias frios, por exemplo, costumo lembrar do meu pai me colocando para dormir e afofando as cobertas ao redor do meu corpo, sem espaço para qualquer vento frio entrar em minha cama. Gosto de lembrar que dele herdei o amor por cachorros e gatos e o prazer em uma refeição em família, todos em volta da mesa.
Em setembro, fecharemos um ciclo de 20 anos sem ele aqui. O tempo acalma a dor. Ver a finitude da vida tão perto faz a gente ressignificar muitas coisas. Observo isso, em especial, quando converso com outras pessoas que já passaram por experiências semelhantes. Nos reconhecemos na empatia. Há poucos dias, estive com duas amigas. Uma perdeu a mãe e a outra o pai. Em uma conversa jogada fora, fica muito claro o quanto essa bagagem que carregamos dá outras dimensões para tudo o que vivemos desde a morte de quem amamos. O tempo também nos mostrou que há muita vida sim, após as despedidas. Há espaço para renovar os sonhos e ser feliz. Em um momento tão delicado, em que quase 500 mil famílias estão em luto por uma doença que há dois anos sequer existia, torço para que o tempo também seja um aliado. Que neste ambiente de luto coletivo, haja sensibilidade suficiente para respeitar a dor do outro.
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