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O médico do HSC que gerenciou a crise na tragédia da Boate Kiss

Carlos Fernando Drumond Dornelles veio para Santa Cruz em 2016. Três anos antes, em Santa Maria, viveu o episódio que, segundo ele conta, mudou a sua vida | Foto: Luciano Pereira/HSC/Divulgação

“Está calmo agora. Pode vir”, mandou por mensagem o médico Carlos Fernando Drumond Dornelles, por volta das 9h40 dessa terça-feira, 30. Era o momento em que poderia receber a Gazeta do Sul para uma entrevista, devido ao trabalho que desempenha na ala vermelha, de alta complexidade, do Hospital Santa Cruz (HSC). Ao chegar no pronto atendimento, a assessoria da casa de saúde informou que a equipe deveria aguardar, pois o médico de 43 anos havia sido chamado para um atendimento de emergência. Ele atuou na manhã desta terça, no salvamento de um homem, que havia entrado em parada cardiorrespiratória.

O trabalho diário do médico emergencista é esse. De um minuto para o outro, uma vida pode estar em suas mãos, e ele precisa agir. Isso já entrou em sua rotina, mas nada se compara ao que vivenciou na madrugada de 27 de janeiro de 2013, quando participou do episódio que, segundo ele próprio, foi o divisor de águas em sua vida profissional e pessoal. O médico do HSC e santa-cruzense de coração, como ele mesmo se define, foi o responsável pelo gerenciamento de crise na área da saúde, naquela que foi considerada a maior tragédia da história do Rio Grande do Sul.

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O caso do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, começa a ter seu desfecho concluído a partir das 13 horas desta quarta-feira, 1º, com o julgamento dos quatro acusados pelo fato – os empresários e sócios da Kiss, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann; o vocalista da Banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos; e o produtor musical Luciano Bonilha Leão – no plenário do tribunal do júri do Foro Central I, em Porto Alegre. Nessa terça-feira, à Gazeta, Dornelles contou momentos de bastidores que foram decisivos para o salvamento de muitos jovens naqueles dias, além de relembrar o clima estranho que pairava no ar da cidade universitária horas antes da tragédia.

Incêndio é considerado a maior tragédia da história do Rio Grande do Sul

“Fogo! Fogo!”

A semana que antecedeu a tragédia foi atípica no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Santa Maria, onde Carlos Fernando Drumond Dornelles trabalhava. Não havia movimento de emergência na cidade com mais de 250 mil habitantes. “A UTI ficou a semana inteira parada. Nada acontecia. Na sexta-feira, 25 de janeiro, um técnico em enfermagem me perguntou se isso não era presságio de que alguma coisa estava para acontecer, e eu disse que não estava com uma sensação boa.”

Quando entregou o plantão para o médico Pedro Copetti, já no sábado pela manhã, 26 de janeiro, Dornelles relatou que não havia situações de emergência em andamento. Às 18 horas, um homem ferido por arma de fogo seria atendido, para quebrar o ciclo sem ocorrências. “Saímos para jantar na noite e depois, por volta das 23 horas, como costumeiramente fazíamos, eu e minha esposa passamos na frente dos bares e casas de shows, inclusive da Kiss, onde ainda havia pouco movimento”, disse o médico.

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O casal foi para casa dormir, até o telefone de Carlos romper o silêncio, às 3h28. O médico viu na tela que se tratava de Copetti e que, para o seu colega ligar, alguma coisa muito séria tinha acontecido. Ao atender, ouviu gritos: “Fogo! Fogo! Onde tu tá? Precisamos de ajuda aqui! Tá um caos. Vem pra Kiss!”. Como ex-militar, Dornelles já tinha pronto o macacão e equipamento preparado para se arrumar em uma situação de emergência. Foi de táxi até a boate. O comentário do motorista é que havia ocorrido um princípio de incêndio no local, com feridos.

Embora já tivesse passado seis meses e 21 dias trabalhando pelo Exército em missão após o terremoto no Haiti, em 2010, Carlos chegou ao local e se assustou com a cena que viu. “Era um cenário de guerra. Vi uma fumaça escura, densa. Cheguei próximo da boate e estavam trazendo muitos feridos para fora e colocando na ambulância, além de alguns inconscientes e pessoas já em óbito. Fiquei tentando atender o máximo de gente possível, seja ali na rua ou no estacionamento, onde estavam sendo colocadas pessoas deitadas.”

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Os corpos dentro da boate

Conforme o médico, uma das observações feitas pela equipe do Samu durante o caos instalado na frente da boate era de que muitos jovens voluntários, de calça jeans, com a camiseta enrolada no rosto para evitar a fumaça, estavam entrando para retirar vítimas, mas reapareciam em óbito nas linhas de atendimento.

“Foi quando comunicamos aos bombeiros e policiais que não deixassem mais as pessoas entrarem, apenas os bombeiros ou agentes com equipamentos adequados, para evitarmos mais mortes.” Em um momento posterior, por volta das 4 horas, já cerca de uma hora e meia depois do início do incêndio, os agentes detectaram que não havia mais possibilidade de salvar ninguém com vida de dentro da boate.

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Por ironia do destino, duas semanas antes do fato, a equipe do Samu havia participado de um treinamento para situações que envolvessem múltiplas vítimas. Por volta das 6 horas, já com o Instituto-Geral de Perícias (IGP) dentro do local, Dornelles foi chamado pelos agentes para verificar a possibilidade de que alguma vítimas pudessem estar com sinal de vida.

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“Quando entrei, me deparei com corpos na entrada, portaria, bar. Foi uma cena muito pesada, chocante e triste. Na bilheteria, havia três meninas mortas. Muitas pessoas estavam entrelaçadas e amontoadas em uma pilha com mais de um metro e meio de altura.” Carlos Fernando Drumond Dornelles então comunicou os agentes de que não havia mais qualquer possibilidade de alguém, no interior do ambiente, estar com vida. Ele iria para o hospital, a fim de auxiliar no atendimento aos feridos.

IGP realizou perícia ainda na manhã do fato | Foto: Rodrigo Assmann/Banco de Imagens

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Organização em meio ao caos

Quando chegou ao Hospital de Caridade Dr. Astrogildo de Azevedo, o médico se deparou com salas de vítimas, algumas em atendimento e outras já mortas. “No meio daquele caos, uma reunião foi organizada entre as equipes, na qual foi estabelecido um gerenciamento de crise externa. Eu ficaria responsável pela organização do transporte dos feridos de outros hospitais para atendê-los da forma mais adequada.”

Nesse momento, foi decidido que os pacientes queimados graves deveriam ser transferidos por aeronaves. Antes de organizar os transportes, dois dos pacientes ainda seriam transferidos por ambulância – um para Cachoeira do Sul e um para Canoas, este último por uma unidade do Samu de Santa Cruz do Sul. “Acionamos a Força Aérea Brasileira para transportar os pacientes mais graves pelas aeronaves Black Hawk. O governo federal autorizou, definimos os pontos de decolagem e aterrissagem e começamos o transporte. Foram levadas 56 pessoas, o maior aerotransporte de pacientes no País e um dos maiores da história, perdendo apenas para as guerras mundiais.”

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O gerenciamento de crise traçou critérios minuciosos para verificar quais vítimas tinham condições de voo. O santa-cruzense Matheus Raschen estava em um dos primeiros voos. “Foi uma operação extremamente complexa, com muitas ocorrências nos bastidores, muitas coisas funcionando e andando bem, para dar certo.” Anos mais tarde, Dornelles viria a conhecer Nestor, pai de Matheus. O jovem de 20 anos acabou falecendo já em Porto Alegre, dias depois do incêndio. “Tivemos a oportunidade de conversarmos em uma cafeteria aqui de Santa Cruz. Foi um papo bastante emocionante, muito difícil pra ele e pra mim. Dali se formou uma grande amizade, tanto com o seu Nestor como com a dona Núria, sua esposa.”

Carlos (o primeiro, em pé, da direita para a esquerda), com a sua equipe do Samu | Foto: Arquivo pessoal

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Os casos

Carlos Fernando Drumond Dornelles revela que não foi ao Centro Desportivo Municipal de Santa Maria, lugar onde foram dispostos os mortos para reconhecimento dos pais. “Dediquei 100% do meu tempo para as vítimas que estavam lutando pela vida. Não me permitia sair de um local em que eu estava sendo útil, para onde eu não poderia auxiliar mais. Meu papel como médico era atender as pessoas vivas.”

Dentre as cenas mais tristes que diz não esquecer, lembra de uma que envolvia um casal. “Eu estava na área de triagem, no estacionamento em frente à Kiss, e uma mulher me pedia para verificar se um homem deitado estava vivo. Eu olhei e falei que não tinha mais o que fazer, que ele estava em óbito. Depois, ela disse chorando que era a noiva dele. Aquilo foi muito difícil, pois é um daqueles momentos em que a emoção aumentava, mas você não podia deixar a linha de raciocínio se perder, pois havia muito trabalho pela frente.”

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Outra situação envolveu o jovem Delvani Brondani Rosso, então com 20 anos. Ele teve 45% do corpo queimado. “12 dias depois, o caso dele continuava inspirando muitos cuidados. Ele foi o mais queimado que sobreviveu. Não conseguíamos colocá-lo na aeronave em virtude do seu estado, mas chegou um momento em que precisava ser transferido. Quando conseguimos e ele chegou bem e vivo em Porto Alegre, nossa equipe desabou no choro. Eu me sentei no chão e chorava feito uma criança. Era um alívio de dor, desespero e cansaço de todos aqueles dias.”

Em busca de justiça

Natural de São Sepé, o médico do Hospital Santa Cruz cursou Medicina na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), onde se formou em 2007. Em 2008, serviu no Exército em Santa Maria, onde ficou até 2012. Em 2011, também passou a atuar no Samu de Santa Maria, onde ficou até 2013. Passou na prova de Medicina Emergencial para trabalhar no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre, para fazer a especialização. Em 2015, veio trabalhar em Santa Cruz, nos plantões.

Em março de 2016, veio em definitivo para o município com a esposa. O seu filho, de 2 anos, nasceu em Santa Cruz. “É uma cidade que me acolheu muito bem. Tem segurança, lazer. Me sinto um santa-cruzense.”

Sobre o júri, pede justiça. “Assim como os pais e envolvidos, eu me sinto uma vítima. Eu não gostaria de estar atendendo aquelas pessoas, de ver o que eu vi, de conversar com os pais em desespero. Esse fato me fez amadurecer muito. Pude passar a muitas pessoas que devem enxergar o outro lado, que hoje uma pessoa querida está aqui, e amanhã pode não estar mais. Sobre o julgamento, espero justiça e penas severas para punir os responsáveis.”

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