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CONFLITO

Ucraniano radicado em Santa Cruz conta drama vivido para escapar da guerra

Foto: Rafaelly Machado

Andrii Gus estava em sua cidade natal quando a guerra teve início: na foto, mostra imagem de base militar próxima que foi atacada

Pouco antes das 6 horas do dia 24 de fevereiro, Andrii Gus foi acordado pelo barulho de uma explosão. Não sabia de onde vinha, mas sentiu a vibração na janela do quarto onde dormia, em Korosten, na Ucrânia. Pouco depois, seu pai, de 68 anos, que é aposentado mas ainda trabalha no ramo de infraestrutura, chegou em casa, bem antes do que seria o fim do expediente. “Fecharam a empresa. Parece que a guerra começou”, contou. A partir dali, a família entraria em uma dura jornada pela sobrevivência, na qual chegaram a passar quatro dias dentro de um carro e passaram à condição de refugiados em outro país. Na última sexta-feira, 1º, Andrii chegou a Santa Cruz do Sul.

Natural de Korosten, Andrii tem 39 anos e mudou-se para o Brasil em 2008, após casar com uma mineira. O casal, que atualmente está separado, acabou em Santa Cruz porque ela trabalhava em uma empresa de tabaco. Aqui, Andrii foi aprovado em uma seleção para atuar na área de vendas internacionais da Imply Tecnologia.

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Desde agosto, ele estava com os pais na cidade natal, trabalhando de forma remota. O plano era retornar no fim de março, quando pegaria um voo na capital, Kiev, mas tudo começou a mudar com o início do conflito. Até então, Andrii, assim como boa parte dos ucranianos, era cético em relação ao assunto, apesar das insistentes ameaças de invasão por parte do governo da Rússia. “Até o último momento, ninguém acreditava que isso iria acontecer. O Tironi (Ortiz, CEO da Imply) me ligou várias vezes, oferecendo que eu viesse para o Brasil. Mas eu falava: ‘Não, isso vai se resolver de forma diplomática’”, conta.

Quando o pai trouxe a notícia, Korosten, que fica no norte da Ucrânia, distante 40 quilômetros da fronteira com Belarus, ainda não havia sido atacada. Tudo indica que a explosão ouvida por Andrii tenha ocorrido na região de Kiev, a cerca de 150 quilômetros dali, já que os primeiros alvos dos foguetes russos foram pontos estratégicos na capital e em regiões como a de Mariupol, no leste.

Desesperados, Andrii e o pai souberam na hora que precisavam sair dali imediatamente. Uma das principais preocupações era porque ao lado de Korosten há uma antiga base militar, que no tempo da União Soviética chegou a abrigar bombas atômicas e ainda era utilizada como depósito de explosivos. Era uma questão de tempo para que o local fosse atacado, com consequências imprevisíveis. Colocaram algumas peças de roupa em malas, sacaram os passaportes e partiram, sem ideia do que viria a seguir.

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Foi apenas perto do meio-dia que eles conseguiram, de fato, deixar a cidade. Isso porque a mãe de Andrii, que tem 67 anos, estava de plantão no hospital onde trabalha como enfermeira e só pôde sair após o governo determinar que o entorno da base militar fosse evacuado. De fato, a unidade foi atacada no dia seguinte, mas os militares ucranianos tiveram tempo de retirar boa parte dos explosivos, o que tornou o impacto menor.

Família esperou em fila de carros por vários dias

Além de Andrii e dos pais, embarcaram no carro a irmã dele, o cunhado e a sobrinha de 11 anos. A ideia era seguir em direção ao oeste e buscar abrigo na casa de familiares até que a situação se acalmasse – o que, eles acreditavam, aconteceria em poucos dias. Como a rota principal exigia que passassem exatamente ao lado da base, resolveram cruzar campos e áreas de mata fechada para evitar riscos.

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Quando saíram de Korosten, logo se depararam com colunas de soldados ucranianos e tanques, que estavam sendo deslocados de bases do oeste para reforçar a defesa nos pontos por onde as tropas russas avançavam. Àquela altura, a guerra já transformava a rotina no país: nos acessos às cidades, havia bloqueios militares, onde eram verificados os documentos de todos os que passavam para rastrear russos que atuam como infiltrados, colaborando com a invasão. “Foi um sentimento muito estranho ver tudo aquilo. Era muito assustador e preocupante”, lembra Andrii.

O pior, porém, ainda estava por vir. No meio do caminho, decidiram mudar o plano e sair do país. A sobrinha mais velha de Andrii morava em Cracóvia e avisou que havia arranjado um lugar onde eles poderiam ficar em segurança. A surpresa se deu quando, cerca de 400 quilômetros depois, já à noite, chegaram à fronteira com a Polônia e encontraram uma gigantesca fila de veículos, possivelmente com mais de 10 quilômetros. Ucranianos de todas os cantos buscavam proteção no país vizinho. Como lembraria Andrii, muitos carregavam filhos recém-nascidos no colo ou nem sequer portavam seus passaportes ou algum mantimento, já que haviam saído às pressas das regiões que estavam sob ataque.

Assim começou um verdadeiro martírio. Como todos os veículos precisavam passar por dois controles – um militar e outro de passaporte –, a fila andava, mas de forma muito lenta, o que levou a uma longa e sofrida espera. “Literalmente moramos dentro do carro por três dias”, conta.

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Como tinham apenas algumas frutas e água, no segundo dia Andrii e o pai caminharam pela estrada atrás de algum lugar onde poderiam conseguir comida. Acabaram descobrindo uma loja, que estava apinhada de pessoas, todas na mesma situação, e com as prateleiras quase vazias. Só conseguiram pegar alguns pacotes de biscoitos, água e café.

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Sem poder fazer nem a higiene pessoal, a família ainda tinha que enfrentar temperaturas negativas à noite, uma vez que o inverno não havia terminado. A situação levou-os a um desgaste físico crescente. Embora precisassem estar atentos à fila e aos veículos que tentavam passar na frente dos outros, às vezes todos “apagavam”, derrubados pelo cansaço incontrolável. Quando percebiam, a fila já havia andado.

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Mas apesar da falta de conforto e do sono, o pior era a tensão psicológica. Para piorar, quando já estavam na fila, souberam que o governo havia determinado que homens entre 18 e 60 anos não poderiam sair do país. Não seriam necessariamente obrigados a servir ao Exército, mas não tinham autorização para deixar o território nacional. Com isso, para ele e o cunhado tudo se tornava incerto. “Foram muitos pensamentos. Se íamos conseguir cruzar a fronteira, se deixariam eu e meu cunhado passar. Também nos perguntávamos qual seria o resultado daquela guerra, se teríamos casa para voltar, se a Ucrânia ainda existiria como país, como ficariam nossos parentes. Tudo isso cozinhava na minha cabeça. Até que chega um momento em que não aguenta mais”, conta.

Quando finalmente chegaram ao primeiro posto, já no dia 27, uma militar se aproximou do carro e perguntou a idade dos homens. Andrii chegou a apresentar o passaporte brasileiro, na expectativa de que isso abrisse alguma porta, mas ela não deu muita atenção. O que mudou a situação foi quando o cunhado mostrou um documento que comprovava que a filha havia nascido com deficiência auditiva e, por isso, a mãe tinha aberto mão de trabalhar fora e ele era o único provedor da casa. A militar ainda ficou desconfiada, pediu que todos descessem do veículo e só autorizou que seguissem após conversar com alguns colegas.

Polônia preparou acolhimento

Um sentimento de alívio começou a tomar os corpos cansados do grupo quando pisaram em solo polonês. Não só por estarem mais longe dos conflitos, mas sobretudo porque logo perceberam que o país vizinho estava disposto a acolhê-los de fato. A entrada foi rápida e tranquila: exigiram os passaportes e mais nenhum documento. Até o teste negativo de Covid-19, que estava previsto nos protocolos sanitários em vigor, foi dispensado.

Logo após cruzarem a fronteira, depararam-se com uma grande estrutura de solidariedade. O governo polonês havia orientado os cidadãos que, caso tivessem condições, se deslocassem para ajudar. Autorizou, inclusive, incentivos para quem desse teto a refugiados. “Assim que entramos, encontramos um caminhão onde ofereciam roupas quentes, chá, café. E havia pessoas com placas de ‘bem-vindos’, oferecendo carona de graça até Cracóvia e Varsóvia. Foi muito emocionante.”

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Até Cracóvia, foram outros 400 quilômetros de carro. Na madrugada do dia 28, chegaram ao apartamento onde ficariam, completamente exaustos. O apartamento, aliás, era outra manifestação de profunda empatia: para permitir que a família se instalasse, a proprietária liberou o imóvel e foi para a casa da mãe. “Muitas pessoas fizeram isso. É algo impressionante”, emociona-se Andrii.

Passado mais de um mês e ainda sem perspectiva concreta de quando poderão voltar para a Ucrânia, os familiares tentam estabelecer uma rotina no país vizinho. Alguns dias após a chegada deles, a Polônia aprovou uma lei para regulamentar a presença dos refugiados, criando, por exemplo, um registro que os habilita a trabalhar – é o que os pais de Andrii pretendem começar a fazer em breve. Os ucranianos também receberam direito a passe livre no transporte público, e a sobrinha de Andrii passou a frequentar uma escola especial para crianças com deficiência auditiva – dispõe inclusive de um veículo para levá-la e buscá-la todos os dias, gratuitamente.

Durante o período em que ficou na Polônia, Andrii seguiu trabalhando remotamente para a Imply, ao mesmo tempo em que recebia notícias do avançar da guerra na terra natal. Logo após o ataque à base militar, um míssil foi lançado contra um bloqueio militar no acesso a Korosten. Dias depois, um foguete caiu em uma área residencial da cidade, matando um homem que estava em casa e arrancando as pernas de um menino de 3 anos.

Os que optaram por permanecer por lá, confiando que a guerra seria rápida e sem maiores estragos, passaram a conviver com as constantes sirenes que alertavam sobre ataques aéreos, obrigando todos a correrem para os abrigos subterrâneos que existem na maioria dos prédios, construídos após a Segunda Guerra Mundial. Às vezes, as sirenes disparavam várias vezes ao longo do dia e de madrugada.

“Desejo que essa loucura tenha fim”

Os relatos que chegavam até Andrii indicavam situações terríveis, como a de militares russos que entravam nas casas abandonadas e roubavam tudo o que havia de valor, como dinheiro e joias. Muitos conhecidos perderam tudo, ficando apenas com os documentos, e um amigo de infância foi morto a tiros em plena rua quando se deslocava até Kiev para resgatar familiares. Até agora, a família não conseguiu enterrá-lo. “Isso dói. Dói muito”, confessa. Por sorte, a casa da família em Korosten não foi atacada.

Na última semana, imagens de corpos de civis espalhados pelas ruas da cidade de Bucha, que foi retomada pelos ucranianos, chocaram o mundo.

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Embora esteja longe do leste europeu há vários anos, Andrii demonstra um forte sentimento de pertença e não esconde a dor pelo drama ucraniano. Para ele, embora os rumos da guerra sejam incertos, o país não estará livre de algum nível de conflito enquanto o presidente russo, Vladimir Putin, estiver no poder. “Ele não reconhece a Ucrânia como um país. Para ele, é tudo Rússia. Ele diz que nosso governo é nazista e [que] está nos forçando a abandonar a ideologia russa. Essa é a visão dele e ele não vai mudar”, diz.

Segundo Andrii, o que frustrou as expectativas de Putin de que não encontraria maiores dificuldades para tomar o controle da Ucrânia foi justamente o apoio da população ao atual governo e o desejo predominante de se libertar da influência russa e conquistar a plena autonomia. “Nós temos outra mentalidade, já saímos da União Soviética faz tempo. Esse já é o sexto presidente, temos liberdade para falar o que pensamos. Com esse governo, ganhamos mais confiança, vieram investimentos estrangeiros e começou a reconstrução do país. Zelenski começou a batalha contra os oligarcas e muita gente que tinha saído para trabalhar no exterior começou a voltar.”

Para ele, o sucesso da Ucrânia e a consequente aproximação do país com a Europa estão na origem da guerra, já que representam perda de poder para a Rússia. Para justificar a invasão, conta Andrii, o governo russo se valeu de desinformação, difundindo, por exemplo, que o idioma russo estaria sendo proibido e os cidadãos russos estariam sendo perseguidos. “No sul, só se fala russo. A maioria dos meus amigos só fala russo e ninguém diz nada sobre isso. Os russos são sempre bem-vindos.” De acordo com ele, só o que os ucranianos buscam é autonomia e liberdade. “A Ucrânia quer ser Ucrânia, não quer mais voltar para lá. Nós temos nossa filosofia, começamos a construir nosso país.”

Questionado sobre o que deseja para o seu país após esse episódio, Andrii não consegue segurar a emoção. “Desejo que essa loucura tenha fim, que as pessoas parem de morrer, que nos devolvam as terras perdidas e que o país seja reconstruído. E desejo paz. Ninguém merece isso que está acontecendo.”

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