No meio do furacão de ódio, mentiras, ofensas de toda ordem que tingiram de tristeza e vergonha o país no período eleitoral, uma postagem me deixou perplexo e arranhou minha esperança. Alguém postou mais ou menos isto: que sempre precisou de médico, de dentista, de mecânico, mas jamais precisou de músico, de cantor, de artista para viver. A postagem apareceu logo após o episódio com o músico Seu Jorge num clube em Porto Alegre. Houve inúmeras curtidas, comentários concordantes e compartilhamentos.

Ter esse conceito sobre a importância da arte deveria encher de desalento o país inteiro. Nas casas dessas pessoas, não deve haver nenhum acorde musical, nenhum filme, nenhum quadro, nunca deve ter entrado uma única poesia. No pátio, o canto dos pássaros deve ser abominado, o verde das árvores deve machucar seus olhos, o azul do céu, a noite enluarada, as flores suaves e perfumadas devem ferir suas almas, porque em tudo isso há ternura, há arte, há paz.

LEIA TAMBÉM: Não precisava de tanto

Desejar o silêncio da arte, calar o cantor, negar o pintor, o cineasta, o escultor, afirmar que nenhum deles lhes faz falta é sequestrar o encanto da vida. O que diriam essas pessoas a seus filhos? Como dançam romanticamente nos bailes, nas festas? Se músico não faz falta na vida, então devem valsar em silêncio, resgatando alguns sons longínquos retidos na memória. Dançam em silêncio, porque não precisam de músico.

Inúmeras vezes eu falei, em palestras e eventos, que criança ou jovem que se envolve com poesia, com dança, com aprendizagem de música, pintura, teatro, não ofende os colegas, não desrespeita o professor, não faz arruaças na rua, porque conhece o recanto onde nascem e moram a harmonia, a suavidade e a paz. Afirmar que artista, de qualquer expressão, é inútil, desnecessário, é ofensa quase sem perdão. É doído demais.

LEIA TAMBÉM: Do antigo ao moderno

Toda expressão de arte nos aproxima dos outros, faz com que nos entendamos melhor, ameniza nossos desconfortos, nossas eventuais dores, nos proporciona conhecer melhor a vida com todas as suas nuances pessoais e sociais. A arte contribui para nosso desenvolvimento psicológico, emocional, mental, cultural, até físico. Quantas pessoas encontram nela um refúgio para amenizar sua solidão, suas perdas, seus cansaços! Quantas vezes, após um dia de intenso trabalho, de reiterado estresse, a serenidade nos socorre através de boa música, de bom filme, de boa leitura!

A arte nos ajuda a medir e a julgar, aguça nosso senso crítico. Crítico não no sentido de falar mal, mas de saber avaliar, pesar, distinguir, escolher. Ela nos educa, nos ensina a respeitar e aceitar as diferenças, as opções religiosas, filosóficas, ideológicas, políticas. A arte muitas vezes transgride, agride nossos conceitos já ou até então estabelecidos. É aí que entra a nossa capacidade de aceitar ou não, de incorporar ou rejeitar. Para isso, não precisamos silenciar ou execrar o seu autor. Inúmeras vezes, obras que detestamos são recebidas como bálsamo por tantas outras pessoas, obras severamente censuradas no passado, hoje recebem a palma do reconhecimento.

LEIA TAMBÉM: O que terá dado

Calar a arte é suprimir a alegria da vida. Todo artista é um nobre trabalhador da sociedade. Não precisamos apenas de formigas, cigarras igualmente são necessárias para, num equilíbrio perfeito, termos todos direito à felicidade. Precisamos de médicos, sim, mas um Milton Nascimento também preserva nossa saúde.

LEIA MAIS TEXTOS DE ELENOR SCHNEIDER NO PORTAL GAZ

Quer receber as principais notícias de Santa Cruz do Sul e região direto no seu celular? Entre na nossa comunidade no WhatsApp! O serviço é gratuito e fácil de usar. Basta CLICAR AQUI. Você também pode participar dos grupos de polícia, política, Santa Cruz e Vale do Rio Pardo 📲 Também temos um canal no Telegram! Para acessar, clique em: t.me/portal_gaz. Ainda não é assinante Gazeta? Clique aqui e faça sua assinatura agora!